31 dezembro 2007

Influências latino-americanas

Earth boy - South America

(Pacto de Lausanne – Parte 4)*

É preciso dizer que Lausanne não foi a vanguarda de um processo de reflexão teológica a incluir uma agenda importante de compromisso social. Por outro lado, é verdade que teve um alcance e influência mundiais a respeito dessa agenda de missão.

Talvez tenha tido seus méritos ao permitir que expressões dessa reflexão teológica da missão integral encontrassem aí espaço, oportunidade para amadurecimento, para divulgação e para formação de lideranças evangélicas do mundo todo a partir desses paradigmas missiólogicos que foram formulados.

Pode-se apontar inclusive que houve influência latino-americana no processo de reflexão pré-Lausanne e na redação final do Pacto. Desde a realização do Primeiro Congresso Latino-Americano de Evangelização (Clade I, 1969) e depois, com a criação da Fraternidade Teológica Latino-Americana (1970), reconhece-se que “teólogos evangelicais latino-americanos começaram a influenciar o debate teológico e missiológico em nível mundial e tal influência foi sentida na preparação, execução e desdobramentos do Pacto de Lausanne”1.

Mesmo entre os que avaliam que a redação final do documento poderia ter sido mais radical, como seria o desejo dos latino-americanos, ainda assim reconhece-se que “o Congresso de Lausanne foi um momento em que o mundo ouviu a voz dos teólogos latino-americanos, tomando expressões de suas palestras e citando-as literalmente no Pacto de Lausanne”2.

Lembro-me da primeira vez em que li as palestras principais proferidas em Lausanne. Todos textos muito bons, mas dois em especial chamaram-me a atenção. Eram justamente os de dois representantes de nosso continente: René Padilla, com o tema “A evangelização e o mundo” e Samuel Escobar abordando “A evangelização e a busca humana da liberdade, justiça e realização pessoal”.

São abordagens que levam a sério a integralidade do evangelho, procurando fazer pontes reais com os desafios que nosso mundo nos apresenta. Certamente essa foi uma influência importante no espírito do congresso e em seus desdobramentos, assim como na redação do próprio pacto, onde Samuel Escobar teve a oportunidade de participar como representante da América Latina.

(Continua...)

* parte 4 da reprodução do prefácio que escrevi para a série Lausanne 30 anos, volume 1, John Stott comenta o pacto de Lausanne, ABU e Visão Mundial, 2003.


1 LONGUINI, Luiz N. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo latino-americano. Viçosa, Ultimato, 2002, p. 190.
2 Idem. p. 191.


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26 dezembro 2007

Você já ouviu falar do Pacto de Lausanne?



(Pacto de Lausanne – Parte 3)*

O vento frio de outono preenchia o pátio externo com as folhas acobreadas que pareciam vir de todo lugar. O curso sobre estudos latino-americanos estava para começar. Graduados em diversas áreas, vindos do mundo todo, reuniam-se para estudar teologia, procurando um melhor preparo para o trabalho missionário a ser realizado nos mais variados contextos.

Éramos os únicos brasileiros entre estudantes de 34 países diferentes. Além da minha esposa, Ruth, e de mim, havia apenas uns poucos representantes de outros países latino-americanos, como a amiga de Porto Rico (“latino, pero no mucho”), e a outra de Trinidad e Tobago (não exatamente um país latino).

Então, nas discussões que buscavam uma melhor compreensão de nosso estimado continente, invariavelmente os olhares se voltavam para nós, na expectativa de ouvir nossa humilde opinião. No começo, emitíamos nossas idéias ainda um pouco tímidos. Depois, aos poucos, íamos nos soltando.

Nossas contribuições e comentários, temperados com uma preocupação acerca dos inúmeros problemas sociais que enfrentamos em nossa realidade, costumavam adquirir aquela exaltação típica de um sangue latino. Daí não tardou a pergunta de alguns colegas, que nos deixou um pouco surpresos: “vocês se guiam pela teologia da libertação, não é mesmo!?”.

Estávamos nessa época desfrutando de um precioso tempo de estudos nessa faculdade que aponta para a diversidade em seu próprio nome, All Nations Christian College, na Inglaterra.

Depois de alguns anos envolvidos no ministério estudantil, Ruth e eu nos animamos muito com a possibilidade de estudar a Bíblia e refletir sobre a nossa missão de uma maneira sistematizada e com boa orientação. E creio que foi isso que obtivemos durante esse tempo. Era lá que travávamos esses debates a respeito da missão da igreja.

Aos poucos, fomos percebendo que havia alguns colegas de outros países que identificavam em nossos posicionamentos idéias associadas à teologia da libertação.

Nesses momentos em que éramos identificados com essa corrente teológica, tínhamos que confessar que na verdade pouco havíamos lido acerca dessa abordagem. Buscávamos então explicar nosso olhar e posicionamentos. Na busca de um referencial conhecido mundialmente, dizíamos algo assim, “Já ouviu falar do Pacto de Lausanne?”.

Um pouco mais de vinte anos após esse documento ter sido escrito, estávamos nós, terceiro-mundistas em um país do primeiro mundo, tentando nos identificar com as crenças e ênfases colocadas naquele documento. Em especial, identificando-nos com a declaração do pacto que diz que evangelização e ação social “são ambos parte de nosso dever cristão” (Parágrafo 5).

Como é que uma declaração escrita há mais de 30 anos, após um congresso realizado em uma confortável cidade na Suíça, pode produzir uma agenda importante de reflexão e ação quanto à responsabilidade social da igreja?

De que maneira as ênfases quanto à necessidade de uma teologia de missão mais integral moldaram o evento e o pacto produzido? E de que maneira esse Pacto de Lausanne, desconhecido de tantos em nossa igreja evangélica brasileira, pode ser apontado como uma referência importante para nossa pauta de reflexão e ação? Vamos tentar refletir brevemente sobre essas questões.

(Continua...)


* parte 3 da reprodução do prefácio que escrevi para a série Lausanne 30 anos, volume 1, John Stott comenta o pacto de Lausanne, ABU e Visão Mundial, 2003.


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22 dezembro 2007

Café, crise e conversão



(Pacto de Lausanne – Parte 2)*

O suor escorria da testa de Joaquim, enquanto ele espalhava o café no terreiro. Eram os idos da década de 30 em uma fazenda no interior de São Paulo, no distrito de Baguaçu, próximo a Olímpia.

Joaquim lutava para sustentar sua mulher e cinco filhos em meio à crise do café. Já havia perdido parte de sua fazenda para um belicoso vizinho que agora cobiçava o restante de suas terras.

Certo dia, surpreendido em uma tocaia, atira de volta com sua velha garrucha. Ao reagir contra aquele que tramava tirar a sua vida, alveja-o de forma que o deixa com sérias seqüelas.

Seu vizinho agora mancava, mas ainda era esperto o suficiente para mover uma ação na justiça contra ele por perdas e danos. Joaquim, em sucessivas derrotas na justiça, vai perdendo aos poucos a terra que lhe restava.

Rastelava o café quando, ao ouvir a notícia da sentença que o obrigava a um pagamento adicional de cinco contos de réis, cambaleia, sofre um ataque cardíaco e morre.

Eulália se vê subitamente viúva, com cinco filhos para criar e grávida do sexto. Sem terra ou outros recursos, vê diante de si um futuro incerto e sombrio.

Nessa época, um pouco distante dali, na estrada para Atibaia, Aclíneo dirige agoniado o automóvel de praça alugado com um propósito: encontrar-se com sua esposa Benedita a fim de enterrar sua filhinha, que não resistiu à pneumonia asmática.

Ela havia viajado com sua mãe, que por sua vez tinha ido tratar sua bronquite asmática naquela estância climática. Ao chegar à pequena casa alugada para o tratamento de saúde, já tarde da noite, surpreende-se ao vê-la cheia.

Pergunta a Benedita quem são aquelas pessoas, ao que ela responde ‘são os crentes’. Integrantes da igreja presbiteriana local a haviam ajudado, mesmo sem conhecê-la, com comida, remédios e amizade. Agora, os acolhiam no luto, os apoiavam nas providências a serem tomadas e no afeto que tanto precisavam.

A maneira como esses crentes os tratam e os amparam em suas necessidades físicas e espirituais o comove. Após o enterro, no dia seguinte, antes de voltar para a região de Olímpia, resolve ir à igreja daquele ‘povo diferente’. Ouve o evangelho, e logo decide ser batizado. O pastor, no entanto, recomenda-o que o melhor seria voltar para sua cidade, procurar uma igreja evangélica e participar de uma classe de preparação para o batismo.

Ao dirigir de volta, essa idéia não lhe sai da cabeça. Fica pensando em Eulália, sua cunhada, e em como ela precisava saber desses crentes e do evangelho que pregavam e viviam. Ao chegar, corre para encontrar-se logo com Eulália, sabendo como ela estava ansiosa acerca do futuro de seus, agora, seis filhos.

Procuram então uma igreja metodista na cidade, recomendada pelo pastor presbiteriano de Atibaia, onde a família é recebida para além das expectativas que pudessem ter.

Essa igreja não os trata de uma maneira meramente assistencialista. Seus membros lhes comunicam um evangelho de perdão, de vida e de resgate da dignidade. Resolvem lhes pagar um aluguel por 3 meses, pelo menos até que pudessem se estabilizar. O barbeiro da igreja assume os cuidados com os cabelos da prole. O dentista crente dá um trato geral na boca de cada um. E assim por diante.

Oferecem ajuda para que seus filhos mais velhos encontrem emprego e logo a família segue o seu rumo de reconstrução, com o diferencial de agora conhecerem de fato acerca do amor redentor e transformador de Deus. Eulália volta-se para o Senhor e decide educar seus filhos nesse evangelho que a alcança em todas as suas necessidades.

Foi com Eulália que o evangelho alcançou minha família. Era a mãe de meu pai, o sexto que ainda não havia nascido, quando Joaquim se foi. Ainda tive o privilégio de conhecê-la, com seu jeito simples e sua devoção apaixonada ao Senhor. Com certeza, marcada pela maneira com que o evangelho chegou até ela de maneira integral e redentora.

Não havia Pacto de Lausanne àquela época, mas havia o evangelho que inspirou o Pacto. E também havia a influência de outros movimentos da igreja de Cristo que, ao longo da história, procuraram não fazer uma dicotomia entre a evangelização e a ação social consciente e transformadora, como ocorreu com o movimento wesleyano na Inglaterra do século XVIII.

Mas por que então poderia ser importante esse resgate, de tempos em tempos, como Lausanne procurou fazer, da integralidade da mensagem e da agenda do evangelho? Passo então a uma segunda história para procurar ilustrar esse ponto.

(Continua...)

* parte 2 da reprodução do prefácio que escrevi para a
série Lausanne 30 anos, volume 1, John Stott comenta o pacto de Lausanne, ABU e Visão Mundial, 2003.

Foto: © Cristiane Sousa
¦Grandmother¦ Vovó Mina
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21 dezembro 2007

Pacto de Lausanne, anos depois...



(Pacto de Lausanne – Parte 1)*

A primeira vez em que ouvi falar do Congresso Mundial de Evangelização de Lausanne, que aconteceu em 1974, e do Pacto de Lausanne, documento redigido ao fim do evento, foi já no final da década de 80. Tomei conhecimento deles através do ministério da Aliança Bíblica Universitária (ABU).

Nessa época, quando fui estimulado a aprofundar meu estudo e compreensão das Escrituras, contei com a ajuda importante de referências de síntese doutrinária e de orientação para nossa práxis missionária, como o Pacto de Lausanne.

Passei então a perceber que minha fé não admitiria mais fazer separações entre a dimensão da salvação pessoal do indivíduo (entendida como a necessidade de uma resposta pessoal ao chamado de Deus para reconciliação, seguida do desenvolvimento de uma relação íntima de cada convertido com seu Senhor e Salvador) de uma adequada preocupação integral com o ser humano em seu todo e com as questões que afetam o mundo em que vivemos (entendendo que a conversão do indivíduo não se dá em um vácuo, e que o evangelho de Cristo afeta todas as dimensões da vida).

O Pacto de Lausanne, documento produzido durante congresso que contou com cerca de 2.700 participantes, vindos de diferentes regiões do planeta, foi com certeza um marco que já moldou mais de uma geração de líderes da igreja de vários continentes. Ele estabeleceu paradigmas para a vivência de nossa fé que procuravam evitar o horizonte fechado do fundamentalismo, assim como esquivar-se das armadilhas de uma teologia liberal, lançando assim pontos de partida importantes para reflexão e ação da igreja evangélica no mundo todo.

Fazer uma análise aprofundada dos efeitos de Lausanne certamente é uma tarefa muito ampla, que vai além do escopo desse artigo. Talvez então poderíamos pensar em uma abordagem um pouco diferente.

A fim de lançar luz sobre algumas questões, contarei aqui duas histórias, ocorridas em tempos bem distintos. Primeiro, vamos aos cafezais do interior de São Paulo, em meio a lutas por terra e conversões ao evangelho, décadas antes de Lausanne.

Depois disso, iremos bem adiante, na década de 90, ao visitarmos as dependências de uma faculdade situada nos bucólicos campos verdes da Inglaterra, onde os tiros da caça ao faisão assustam os mais desavisados.

Penso nessas duas situações pois elas, de uma maneira bem pessoal, ajudam-me a entender a importância de um evento como o de Lausanne e os marcos importantes que ele delineia para a igreja evangélica brasileira.

(Continua...)

* parte 1 da reprodução do prefácio que escrevi para a série Lausanne 30 anos, volume 1, John Stott comenta o Pacto de Lausanne, ABU e Visão Mundial, 2003.

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My Brother
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19 dezembro 2007

O caminho do peregrino



“Eles foram conhecidos como os do Caminho”. Foi assim que José iniciou a apaixonada defesa de sua maneira de entender e viver sua fé, fazendo referência a como os primeiros cristãos da história eram chamados.

Depois de ouvir atentamente o que o mano Mané lhe disse sobre sua perspectiva de vida desde a sacada, José o alertou que já ia ficando tarde para sua caminhada matinal.

Saíram, e enquanto caminhavam, as palavras foram chegando, à medida em que o fôlego lhes convidava para a conversa.

José acredita nessa perspectiva de fé e da vida que é construída no caminho. Ele se explicou mais ou menos assim, “não nascemos sabendo, e nem apreendemos o sentido da vida e do universo em um estalo”. Seguiu, “são nas lutas que um passa, nas idas e vindas, no êxtase da Revelação mas também na limitação da compreensão humana caída, que vamos conformando quem somos e em que acreditamos.”

Já dissemos aqui que foi a partir da leitura de um livro do Juan Mackay que o José e o Mané começaram a dialogar, entender suas próprias diferenças, o que os separava, mas também, de um certo modo, o que os unia.

Foi o Juan quem lhes disse, acerca dessa perspectiva do Caminho, que “o descobrimento da verdade espiritual se obtém com a condição de adotar em sua vida certa atitude que é inteiramente incompatível com um modo puramente teórico da existência. A verdade se encontra no Caminho. Ainda poderia ser dito que apenas no momento em que se desce da Sacada para o Caminho, seja por sua própria e livre vontade, seja porque circunstâncias providenciais o arrancaram dali, é quando então se começa a conhecer o que é a realidade".*

Sob o olhar de suspeita de seu amigo, José acrescentou “para ser do Caminho não é necessário deixar seu bairro, sua cidade ou país. Sair pelo mundo não é garantia alguma de ganhar essa perspectiva. Essa tem mais a ver com um estado de ânimo, uma disposição para ver, ouvir, aprender, correr riscos, engajar-se e assumir os custos que sua visão de mundo e sua fé lhe vão demandando”.

Os últimos passos até o prédio do Mané foram em silêncio. Um abraço apertado, e depois a solidão do elevador até o piso de sua torre de refúgio. Daí esgueirou-se pela sacada bem em tempo de ver ao longe o José se afastando também só pela calçada, nessa manhã algo fria e enevoada. “Por ora falta a coragem de sair daqui, mano. De qualquer modo, obrigado. Oro para que você não se perca nas muitas trilhas e caminhos. Quem sabe ainda chegará o dia em que eu me torne também um peregrino”.

* Prefacio a la Teologia Cristiana, Juan Mackay, La Aurora, 1946, p. 47.


Foto: © adrian campfield
, Promise of a new Day
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17 dezembro 2007

Gritando a verdade da sacada



José e Mané são bons amigos. Entendem-se em quase tudo. Quase… Um dos pontos em que não entram em acordo é acerca da perspectiva com que cada um deve viver sua fé.

Nessa amizade de longa data, os dois leram o Prefacio a una Teologia Cristiana, de Juan Mackay. Livro antigo, edição de 1946, mas muito atual em seus temas. Nessa exploração em conjunto, Mané quis explicar a seu amigo que não achou tão ruim assim a perspectiva da sacada, que viu descrita lá no livro.

Grosso modo, esse estado de ânimo da sacada foi identificado por Mackay como uma glorificação do conhecimento religioso às custas da ação moral. Seus partidários não se interessariam muito pelas pessoas, ainda que gastassem tempo refletindo acerca dos problemas que elas enfrentam. De modo geral, são mais teóricos, reflexivos, talvez mais preocupados com os problemas teológicos da cegueira do que com a expressão concreta da compaixão na ação de ajudar a um cego.

Nas palavras do autor do Prefacio: “Sua principal diversão consiste em classificar e rotular tipos humanos, com tanto zelo e deleite, e, devemos dizer, com tão bom êxito também, como os que caracterizavam os esforços dos prisioneiros da caverna, na famosa alegoria de Platão. O espectador desde sua sacada se orgulha de conhecer a identidade, os segredos mais íntimos e o destino final de todo transeunte que passa lá embaixo pela rua”.

Mas ouçamos o Mané em sua defesa. Ele acredita que a tal posição estereotipada da sacada talvez não seja algo assim tão negativo. Ele crê que é preciso refletir bem antes de qualquer ação. Que é preciso fazer a lição de casa, estar apto e bem preparado quanto à todo vento de doutrina e ideologia, para que não seja levianamente soprado para qualquer lado. O Paulo das Escrituras já havia usado argumentos parecidos e isso deixou o José pensativo.

Para o Mané, importa antes definir os parâmetros da pureza doutrinária de onde um se define a si mesmo e de onde pautará sua ação. Tudo bem que por “pureza” ele muitas vezes quer dizer a concordância com todos os matizes de sua corrente teológica de preferência. E antes que eu me esqueça, para nosso amigo Mané não existe isso de preferências ou ênfases quanto à teologia. Há a equivocada e a correta. Essa última, comumente, a sua própria.

O problema de José é um certo hermetismo que percebe em seu fiel amigo. Ele sente que os tais critérios ortodoxos muitas vezes o encerram em uma torre de marfim. São usados para definir parcerias, financiamentos, convites de trabalho ou mesmo para participar de uma singela conferência. Enfim, parece que o zelo de seu estimado Mané não o deixa ouvir, crescer e aprofundar sua fé, tanto em ortodoxia como em prática.

É preciso dizer que José elogia a coerência do Mané. Admira suas convicções, integridade e zelo. Pensa que é até fácil lançar pedras no seu companheiro, ainda que ele mesmo não o faça. Seguem sendo bons amigos.

Também é verdade que José pensa um pouco diferente. Acredita na perspectiva do Caminho, contrária à do mano Mané. Mas tomemos assento por agora e esperemos (na sacada?), que esse é um assunto para a próxima.

Foto: © Cecilia Brum - balcones -
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11 dezembro 2007

Que língua eu devo aprender?




O povo caminhava em silêncio pelas ruas calçadas de pedras desniveladas da pequena Araguari, no interior de Minas Gerais. Chefiando a procissão, o padre da cidade proferia incompreensíveis palavras em latim. Um senhor bem vestido, forasteiro na cidade, aproximou-se e começou a caminhar logo após o padre, entre esse e a multidão. Para cada frase pronunciada, o estranho anunciava sua tradução em português, para espanto e deleite dos moradores da pequena cidade outrora chamada Brejo Alegre.

Ao fim da cerimônia, cada um foi tomando seu rumo de volta às suas casas. Um casal se deteve. Buscaram então aquela misteriosa e culta figura. Encontraram-no e após uma rápida conversa decidiram estudar juntos a Bíblia.

Assim a religiosidade exterior e superficial se transformou em uma fé compreensível, através da Palavra lida e estudada em sua própria língua. Eram os primeiros anos do século XX quando se deu a descoberta da Bíblia pelo jovem casal. Eram os avós de um amigo pessoal que hoje, na terceira geração de evangélicos de sua família, exerce o ministério pastoral.

Aquele viajante hábil nas línguas era Salomão Ginsburg, um judeu nascido onde hoje é a Polônia, convertido à fé cristã ainda moço, e que decidiu vir ao Brasil através do convite da pioneira da evangelização no Brasil, Sarah Poulton Kalley, viúva do médico missionário Dr. Robert Kalley.

Salomão despertou algumas polêmicas em sua época, por sua insistência com os cultos ao ar livre e em seu incentivo para que as mulheres assumissem integralmente seus dons no ministério da igreja e na obra da evangelização. Olhe que essa “briga” foi comprada aí por volta de 1890!

Interessante ou triste perceber que foi seu impulso às mulheres crentes que lhe rendeu, ao menos oficialmente, o rompimento com a Igreja Evangélica Fluminense, pioneira da evangelização em português no Brasil, que o havia acolhido e depois o enviado em missão ao Recife.

Mais tarde esse colportor e evangelista apaixonado se uniu ao ministério dos batistas, e foi assim que exerceu seus dons lingüísticos e de evangelista pouco convencional em terras mineiras e em outros grotões desse Brasil.

Ginsburg trabalhou tanto em grandes centros urbanos como em pequenos povoados. Parece que em países como Brasil ou Uruguai (de onde esse vosso servidor lhes escreve) os problemas sociais pungentes e desagregadores da vida social da metrópole se mesclam com a realidade de pequenas cidades interioranas onde os efeitos da modernização teimam em chegar e a afetar significativamente a vida das pessoas.

Nesse cenário, o povo chamado cristão tem buscado novos métodos em sua arte evangelizadora. Há o crescente uso de mídia, quer seja através das "velhas" TV e rádio, como também na "nova" Internet. "Criativos" novos materiais são impressos. Quem sabe faz, e mostra seu talento em apresentações artísticas, na música, dança ou teatro.

Mas eu me pergunto se muitas vezes uma aparente variedade não oculta uma linguagem hermética, voltada para dentro, em que apenas aqueles que são do “gueto evangélico”, familiarizados com essa sub-cultura, entendem e apreciam. Parece que não se consegue romper muitas barreiras nessa “comunicação”.

Fica pendente o desafio de redescobrir nessa tarefa a prática dos relacionamentos pessoais, da amizade, do ouvido atento, do se dispor a caminhar junto com as pessoas, mesmo ou principalmente as mais improváveis de se converterem ao evangelho de Jesus. Talvez seja essencialmente para essas pessoas à margem e além, fora dos padrões evangélicos, amarradas em vícios, solidão, idolatrias, estilos de vida auto-destrutivos, aprisionadas ao dinheiro ou esmagadas pela falta dele, fechadas em diversas tribos urbanas ou em suas mentalidades provincianas, a quem o evangelho deva ser compartilhado uma vez mais, mas agora de uma maneira que ao menos o entendam…

Que língua eu preciso aprender, como Ginsburg fez com o latim, para ser apaixonado, eficiente, sensível e integral em comunicar e viver essas verdades?

(essa é uma versão revisada de um artigo que escrevi, publicado na Revista Evangelizar, edição 9, novembro de 2006, da AMME)


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09 dezembro 2007

Não nos convidem...



Proponho um boicote. Mas convém explicar-me e preparar o ambiente antes de trazer sugestões mais radicais. Então comecemos de novo.

Quem já viu essa cena? Ao comando do maestro, a música toca forte, em tom emotivo. Vindas de todos os lados, bandeiras invadem o ambiente. Suas cores e balanço hipnotizam os olhares até que, no clímax, a voz declara no microfone: “Está aberta a LXXIV Conferência Missionária da 9ª Igreja Jesus Volta Logo por Favor de Pindorama*”.

Os detalhes e ênfases variam, mas o acontecimento é comum em muitas igrejas, indicação de um razoável interesse nas chamadas “missões”. Buscam então trazer um ou outro “herói” dos rincões transculturais para que nos contem como é a vida a serviço de Deus lá, nos confins do cafundó.... Tudo bem que alguns não vêm de “confins” nem do cafundó....

Voltando à idéia inicial. Proponho que na próxima conferência missionária de sua igreja ou de alguma que você conheça (vá lá, faça a sua parte...) seja proibido convidar qualquer missionário transcultural. Aliás, amplio a proposição e sugiro que não se convide qualquer outra pessoa de fora da comunidade onde você está.

Quem daria as palestras e seminários? Exemplos: o sapateiro da comunidade dirá como é consertar sapatos para a glória de Deus. O empresário será convidado a proferir uma palestra sobre “ética nos négocios: preços e salários justos”. A dona-de-casa (ou dono-de-casa, sejamos sensíveis no tema de gênero) dará um workshop sobre “gerenciamento múltiplo radical”, acerca de como administrar diversas vocações, demandas, jornadas de trabalho, junto ao módulo extra de “como educar seus filhos, com todo o tempo que lhe resta, para os desafios de nosso mundo globalizado, multicultural e relativista".

As opções são infindáveis. Convido-o ao exercício. Uma artista plástica, "a estética do Reino". O contador, "administração tributária eficaz e íntegra". A professora, "a arte de educar e preparar para a vida".

Para alguns seria difícil... O especulador na bolsa de valores, ou o advogado... (desculpe-me, tentei mesmo resistir à tentação da provocação...). Mas talvez bem aí nos casos considerados “difíceis”, a necessidade e o potencial de novos e incríveis caminhos poderão levar a comunidade a novos níveis de aprendizado e obediência ao Senhor.

Nossa ausência, ao menos por um ano, dos que somos “missionários transculturais” e de qualquer outro convidado de fora, poderia ser uma fantástica contribuição à melhor compreensão e vivência da missão da igreja.

Aliás, prefiro o termo “missão” ao muito usado “missões”. Geralmente, esse último refere-se aos “transculturais”. Mas um termo só, “missão”, deveria ser suficiente para falar da vocação da igreja no mundo, aqui, ali e acolá. A geografia seria um “detalhe”. Claro que um “detalhe” para o qual o indivíduo teria que preparar-se adequadamente. Mas a missão mesmo seria de todos, em todo lugar, em um importante resgate do chamado para todos os cristãos, e não supostamente para uma certa “classe” entre eles.

Tudo bem, no final você pode me responder: “Nem pensava mesmo em lhe convidar... metido...”. E terei de admitir que o título do artigo levanta a bola para que você a corte. Tudo bem, faça o seguinte: no próximo ano você me convida para dar um seminário, junto com o advogado...

* Pindorama é o nome de um bairro de Belo Horizonte, de um município de São Paulo e de um filme do Jabor. Significa terra das ávores altas ou terra das palmeiras e de acordo com a Wikipédia seria o nome indígena por excelência para designar o Brasil.

Foto: © Stop
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07 dezembro 2007

John Wesley e a louça do Escobar



A pia engordurada servia de plataforma de onde se erigia a pilha de louça suja. Queria fugir, mas não dava, havia chegado o meu turno. Para minha surpresa, um senhor chegou ao meu lado e ofereceu-se para enfrentar essa batalha comigo. Era Samuel Escobar.

Já se vão 15 anos desse encontro. Eu, um imberbe (tudo bem, sigo assim…) candidato a engenheiro em seu último ano na universidade. Ao meu lado, o Samuel, esse renomado teólogo peruano, que por anos têm nos ajudado a abraçar o evangelho de maneira integral.

A hostil louça se transformou em uma longa e prazerosa tarefa enquanto viajávamos pelo tema principal de nossa conversa: a vida e a obra de John Wesley.

Eu vinha com a minha empolgação juvenil de quem havia lido na adolescência os diários e os sermões de Wesley. Fui motivado pela pura curiosidade de conhecer aquele que foi inspiração para um sonho que minha mãe teve na noite de meu nascimento, e que levou meus pais a incluírem Wesley em meu nome. Do outro lado, Escobar aportava com sua bem embasada reflexão acadêmica, lastreada por sua vasta experiência no campo da teologia da missão.

Entre uma panela vencida e a próxima, Escobar irrompeu com algo que não me esqueci em todos esses anos: “Em um contexto como o nosso, na América Latina, precisamos muito estudar o que aconteceu no avivamento que houve na Inglaterra do século XVIII, com os irmãos Wesley. Talvez esse seja o modelo na história da igreja com as lições mais preciosas para nosso contexto latino-americano. Precisamos fazer pontes com o que aconteceu ‘lá e então’ com o que vivemos hoje, nos desafios para a missão em nossa realidade.”

Aquilo foi um sopro de ânimo para que eu voltasse a refletir sobre aquelee momento da história da igreja cristã. Ao longo dos anos após aquela conversa, engendrei uma busca por livros que narrassem aqueles acontecimentos e outros que buscassem refletir e articular as lições acerca daquele movimento.

Confesso que encontrei material de todo tipo. Biografias que endeusavam o homem, e outras que o caracterizavam como um apóstata e herege. Mas também vi material equilibrado, mais honesto e humano acerca da pessoa de Wesley e daquele momento da história.

Acredito que o livro de Stephen Tomkins, “John Wesley, A Biography”, esteja nessa última categoria. Ele apresenta Wesley como uma figura vívida, especial, mas também bastante humano e polêmico.

Recomendo-a como uma leitura bem interessante e acessível para se aproximar dessa figura e do que aconteceu na história da Inglaterra naquele período.

As lições podem ser distintas, as opiniões também, mas não há como ficar indiferente a um personagem radical como Wesley ou a um movimento que levou o evangelho para fora das portas dos templos, que teve um forte ardor missionário, que juntou a mística do poder do Espírito com um profundo engajamento social, que valorizou o ministério dos leigos e das mulheres, que produziu uma hinologia que influenciou geração após geração e que provocou transformações profundas nas pessoas e nas sociedades em ondas de impacto sentidas ainda hoje.

Diversos grupos cristãos que conhecemos reconhecem sua identidade e suas raízes a partir do que aconteceu naqueles dias. Na verdade, muitos se identificam com essa herança sem conhecer de perto e com intimidade o que aconteceu na história do chamado avivamento metodista. O livro de Tomkins é bem-vindo para ajudar a suprir essa lacuna. Espero que logo apareça uma edição em Português!

Foto: © Hanna Leppänen -
Dirty dishes
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05 dezembro 2007

730 dias...



Hoje é aniversário! Completam-se dois anos da minha primeira viagem exploratória a Montevidéu, Uruguai. Colocamos em nossas malas, eu e Ziel Machado*, uma imensa vontade de fazer uma bela sondagem do território que eu e minha família pensávamos em adotar como a terra de nosso coração.

Isso foi um ano antes de virmos todos, mala e cuia, para cá. É que antes de vir convinha elegantemente perguntar se nos queriam por aqui. Visitamos vários pastores e líderes, fazendo-lhes perguntas e ouvindo suas percepções. Queríamos checar como viam a possibilidade de uma família brasileira vir a essas terras para apoiar um ministério estudantil interdenominacional.

Era uma sensação um pouco estranha. Ziel fazia as perguntas, ouvíamos, e só depois ele me apresentava como o “tal missionário que queremos enviar a essas bandas”. E eu ficava ali, com aquela “cara”, esforçando-me para transmitir confiabilidade e segurança, bem naquele momento da primeira impressão, do olhar perscrutador.

“Será que eu escovei bem os dentes hoje? Eu devia ter passado fio dental para arrancar aquele naco de carne com couve que ficou preso entre meu canino e o pré-molar… Sim, pois não, sou eu mesmo, o que o senhor ou a senhora gostariam de saber acerca de minhas ‘qualificações’?”

Na verdade, sentia-me pouco qualificado ou adequado. Quantas experiências negativas eles podiam já haver passado com estrangeiros que chegavam achando que já sabiam como fazer a obra por aqui? Quem lhes garantiria que eu não faria o mesmo, ou pior?

Também tivemos encontros com estudantes nas universidades, com profissionais que já haviam participado do movimento estudantil no passado, além de cruciais e deliciosas investigações da gastronomia local. Tentamos fazer uma pesquisa do custo de vida, mas isso se complicou depois que a gerente do supermercado nos descobriu e nos confundiu com elementos infiltrados da rede inimiga. Eu lhes pouparei de detalhes constrangedores (para nós, é claro), mas posso dizer que a segurança foi muito gentil conosco nos indicando e nos acompanhando até a porta que dava para a rua…

É isso. Antes de chegar é bom saber o que está acontecendo. Ajuda-nos treinar os olhos para enxergar o mover de Deus que já está lá. Perguntar aos “nacionais” se eles nos querem, ou não, e ouvir deles como e onde podemos cooperar. Bons princípios missiológicos que podem nos poupar ao menos alguns equívocos.

Dois anos, parece que foi ontem. Mas também parece que já foi há muito tempo… Acho que é um bom sinal. Para celebrar essa data, ouça a música “730 dias”, do uruguaio Jorge Drexler, logo abaixo.



* Ziel Machado é secretário regional da CIEE (IFES em inglês), a Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos, que congrega mais de 150 movimentos estudantis cristãos nacionais e autônomos em todo o mundo.

Foto:
Luggage cart
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03 dezembro 2007

O tango e o chapéu do Gerardo

Gerardo tinha duas paixões na vida. Minto, três. Quase ia me esquecendo do chapéu. Comecemos então com essa, antes de falar das outras duas.

Becho, como Gerardo era conhecido, sonhava em ter um chapéu igual àquele que viu seu pai usar, um sóbrio chapéu côco feito de feltro de pêlo de lebre, um clássico do fim do século XIX e início do século XX.

Não tinha ainda 20 anos, mas também já sonhava em projetar um arranha-céus, uma novidade ousada na América do Sul de sua época. Essa era a segunda paixão desse estudante do curso de Arquitetura, da saudosa “Faculdade de Matemáticas”.

Era o ano de 1916, e chegamos à terceira (ou seria a primeira?) paixão de Gerardo, a música. Foi assim. O tímido Becho viu o piano do grêmio estudantil vazio. Aproximou-se, tomou assento e de uma vez compôs aquela marcha. Imaginava que seus amigos, do grupo estudantil conhecido como “La Cumparsa”, gostariam de usá-la no carnaval.

Um ano depois, uma orquestra a tocava pela primeira vez no café “La Giralda”, bem onde foi erigido alguns anos mais tarde (1925) o majestoso Palácio Salvo, com suas linhas exóticas e controversas. Ironias do destino para o jovem músico que nunca chegou a formar-se arquiteto.

Gerardo não tinha idéia do que sucederia com o correr do tempo. Em inúmeras gravações e versões, “La Cumparsita” tornou-se o tango mais famoso e tocado de todos os tempos. O Becho tampouco vislumbrava esse futuro. Talvez por isso tenha vendido os direitos da obra para a editorial Breyer, de Buenos Aires. Arrependido, depois lutou para recuperá-la.

O que se passou então foi uma longa disputa pelos direitos autorais, agravada pelas múltiplas versões do tango. Talvez um consolo para o Becho tenha sido a amizade que fez com o Carlos. Por causa dela Gerardo foi chamado a musicalizar o filme “Luces de Buenos Aires”, cujas canções se imortalizaram na voz potente de seu amigo. Inesquecível a voz do Carlos, o Gardel, esse uruguaio de Tacuarembó que até hoje dizem ser argentino ou francês, vai entender...

Anos mais tarde, em abril de 1948, Gerardo lutava contra uma penosa enfermidade. Surpreendeu-se então, naquela tarde de repouso forçado, com a chegada de uma encomenda trazida pela “Dirección Nacional de Correos”: uma atraente caixa de papelão ovalada, decorada com fotos de cartões-postais do Rio de Janeiro.

No cartão, escrito em Português, lia-se:“do admirador de sua música, Remígio Fernandes Braga – Chapéus Mangueira”. Poucos dias depois Gerardo se foi. Uma nota em seu bolso dizia "Levo o Mangueira comigo". Talvez pensasse que deveria estar elegante em uma possível audição celestial de sua mais famosa criação.

[Remígio Fernandes Braga foi o avô de minha esposa. Neto de um dos fundadores dos saudosos Chapéus Mangueira, foi Diretor Técnico da fábrica por muitos anos. Tinha por costume enviar chapéus para amigos e missionários ao redor do mundo. Nunca soube se o seu Braga gostava de tango, mas pensei que seria uma singela homenagem à sua memória.
Se o encontro do chapéu com o Gerardo nesse artigo é ficção, os outros detalhes da história são, no geral, verdadeiros.
Um dos pontos altos desse ano foi assistir no Teatro Solís às celebrações dos 90 anos do tango “La Cumparsita”, composto pelo uruguaio Gerardo Matos Rodríguez.]

Foto: - palacio salvo -
Upload feito originalmente por Cecilia Brum

Ouça "La Cumparsita":




Cena de "Luces de Buenos Aires", musicalizado por Gerardo Matos Rodríguez e estrelado por Carlos Gardel:

02 dezembro 2007

Cuidado com o que ouve!

Internet é mesmo algo incrível. Por puro acaso, encontrei e ouvi na rede agora há pouco a dramática narração do que me pareceu ser um jogo de futebol. Digo que foi o que me pareceu, porque curto mesmo é jogo de bolinha de gude. Aquelas esferas brilhando ao sol me encantam.

Entendi que era a partida de um grande time de futebol brasileiro, aparentemente lutando para não cair no que chavamavam “série B”, Segundona, algo assim. Não sei bem, porque ultimamente tenho acompanhado com muito interesse os campeonatos de “pelota vasca”.

O narrador e o comentarista da rádio que ouvia identificavam-se com a tal “nação”, torcedores desse clube que não conheço muito, sabe, principalmente pela minha dedicação aos treinamentos para o próximo campeonato de Bocha em piso sintético.

Ao serem mais torcedores do que narradores, fiquei em dúvida se o que descreviam correspondia mesmo à realidade. Foi aí que me lembrei de um vídeo que havia assistido, que revelava essa discrepância entre a narração por rádio e o que de fato se passa em campo. Veja o vídeo logo abaixo.



Está aí, como futebol não é mesmo algo de meu mínimo interesse, aproveito a oportunidade para essa reflexão filosófica importante sobre o hiato entre o que se ouve e o que é real, entre o que se vê ou se sente e a verdade.

Também sobre como nossas paixões afetam nossa objetividade. Falando em paixão, termino aqui que já vai começar a passar na TV a celebrada final do mundial de Handebol de Campo. Depois te conto o resultado.

Foto: © Marquicio Pagola

30 novembro 2007

Diga-me onde moras... 2



Abrimos a porta ao mesmo tempo. Do outro lado do hall, o sorriso largo do vizinho me cumprimentou.

Don Héctor, exclamei.

— Como passas, Ricardo? Sabes que li teu último post no blog?

Don Héctor é um tipo deveras simpático. Grisalho, sempre impecável em seu alinhado terno. Costuma esperar ansioso pelos domingos de sol para desfilar com sua senhora em sua beleza de moto pela rambla* montevideana.

Hoje ele me surpreendeu. Não tinha o que lhe dizer. Como ele sabia que eu escrevia em um blog? Não há mais privacidade nessa vida?

— Interessante isso sobre o lugar em que a gente mora... — prosseguiu.

Esse negócio de Internet é algo mesmo muito devassado. Ele havia lido de verdade! Que disparate! É só colocar na rede que qualquer um acha. Não que meu amigo fosse qualquer um, muito pelo contrário.

— Você não acha que a gente vive bem confortável aqui? — interrompeu meus devaneios.

Estava confuso, intimidado. Olhei para a escada, mas logo desanimei. Dez pisos, mais dois até o subsolo...

— Penso que foi um bom ponto, mas tenho minhas dúvidas — continuou.

Por que o elevador demorava tanto a chegar? Logo hoje? Não que Don Héctor fosse alguém desagradável. Longe disso! É que eu me incomodava por não conseguir concatenar 2 palavras na “conversa”.

— Um tipo pode morar bem, o outro morar mal, mas o dado mais importante para mim é o da perspectiva e da visão da realidade — filosofou.

Os dois apitos agudos avisaram que o elevador havia chegado. Suspirei quase aliviado. Durou pouco. Quando a porta se fechou, foi como se houvesse ganhado nova força em seu argumento. Inclinou a cabeça, pôs uma mão em meu ombro, e vibrando o dedo indicador da outra a uma distância não muito segura do meu nariz, continuou.

— O que mais me chamou a atenção na história foi a maneira positiva com que a "geografia da pobreza" ajudou a Maria a ter uma abordagem distinta, integral em sua missão, ainda que sua teologia apontasse em outra direção.

Por que nunca havia discutido teologia com don Héctor? Por que o mostrador passava os números dos andares em câmera lenta?

— E o Carlos, ora, o Carlos para mim é o seguinte.

Apertou meu ombro. Encolhi um pouco.

— Para mim não adianta discurso e retórica, quando meus olhos não vêem e meu nariz não cheira, sabe?

Sabia é que nunca havia demorado tanto para chegar ao térreo. Seria minha salvação. Lá ele descia.

— A geografia não determina quem sou!

Será que eu disse isso? Olha, já vai passando no 4.

— Mas que ela influencia, ah, isso sim, influencia. Se isso me servir de alerta, ótimo, agradeço o seu alerta.

Era pra alertar alguém? Já está no 2.

— Não quero ficar condicionado à minha geografia, cultura ou educação!

Um, chegou! Ia saindo, voltou, barrou a porta e quase me desafiou:

— Se a gente se recolhe ao no nosso mundinho confortável, aqui, bem aqui, a gente encalha, a gente encolhe, fica míope. Não sente, não vê, não age para mudar o mundo lá fora.

Acho que fiz que sim com a cabeça, nem sabia que queria mudar tanta coisa...

— Nos vemos na próxima!

“Tá”, disse meio pra dentro. Desci ao subsolo. Falar o quê? Não sei bem o que dizer na “próxima”. Acho que vou convidar meu vizinho pra escrever no blog.

* avenida costeira

Foto: Ascensor
Upload feito originalmente por Mor (bcnbits)

26 novembro 2007

Diga-me onde moras...


Morning Sunrise
Upload feito originalmente por Riso&Akko
Dois alunos na mesma classe. O tema, ética transcultural.

Maria havia dedicado sua vida como missionária na África. Inteligente e vibrante na defesa de suas idéias, seria no jargão teológico identificada e definida como "conservadora". Agressivamente defendia a idéia de que o evangelismo verbal era prioritário e que ética social não era parte integral do evangelho.

A mesma Maria gastou sua vida morando entre os mais necessitados e lutando por seu bem-estar. Abriu mão de suas posses, ajudou as pessoas a terem acesso à água limpa, organizou-os para que resistissem às tentativas do governo de tomar suas terras, ensinou-os a ler e defendeu o orgulho que deveriam ter por sua cultura tradicional. Por longos anos Maria viveu numa choça com piso de chão batido.

Carlos era um marxista cristão no mesmo curso. Sentava-se ao lado de Maria. Nos debates entre os alunos, Carlos se mostrava um apaixonado defensor da justiça social. Era inevitável que várias vezes suas idéias se chocassem com as de sua companheira de classe. As notas dessas discussões ele as escrevia com uma caneta cujo preço era maior que o orçamento mensal de Maria. Carlos trabalhava para o
Bank of America e vivia em um confortável apartamento em uma próspera zona da cidade.

O professor, que compartilhava as idéias de Carlos quanto à missão integral, passou a admirar cada vez mais a Maria. Ele passou a lembrar-se das três regras de ouro dos agentes imobiliários: “localização, localização, localização”. E pensava no quanto a nossa geografia influencia nossa teologia e missiologia. Não apenas em retórica, mas em integridade de vida e ação concreta.

Nesse dia, nosso mestre deixou a faculdade pensando que “o primeiro passo para alguém preocupado em justiça social talvez seja o mudar-se de casa”.


[Essa breve reflexão baseia-se livremente na história relatada por Bernard Adeney-Risakotta em seu excelente livro Strange Virtues, ethics in a multicultural world, IVP (p. 226). Os nomes Maria e Carlos são fictícios.
Bernard, o nosso professor na historieta acima, é filho do brillhante missionário inglês David Howard Adeney, que atuou com a China Inland Mission, OMF e IFES. David foi exemplo e inspiração para gerações de líderes na obra estudantil em todo o mundo, mas em especial no extremo oriente, até sua morte em 1994.

Bernard
vive hoje em Yogyakarta, Indonesia, onde é Diretor Assistente do Programa de Graduação da Universitas Kristen Satya Wacana]


Foto: Morning Sunrise
Upload feito originalmente por Riso&Akko

23 novembro 2007

Precisamos de heróis, Roberto

Logo estacionamos em frente à sua casa. Obviamente eu estava ansioso, e grato pela oportunidade de conhecer a Roberto. Fomos com um grupo de estudantes, graças a uma impagável gentileza de nosso anfitrião.

Trinta e cinco anos atrás, esse simpático médico cardiologista foi um dos sobreviventes do avião bimotor Fairchild F-227 da Força Aérea Uruguaia que caiu no meio dos Andes. O filme "Vivos" de Frank Marshall (1993) retomou um interesse pela história, que ainda fascina 35 anos depois do ocorrido.

Eram 45 ao todo, em sua maioria jovens jogadores de rugby do Old Christians Club. Morreram 16 no dia do acidente. Outros tantos não resistiram os ferimentos, a fome, o frio e as avalanches. Foram 16 os que sobreviveram aos 72 dias de isolamento na montanha.

Depois de ouvirem pelo rádio que as buscas haviam se encerrado, e depois de várias tentativas de escapar da prisão de gelo, três deles partiram para o que seria a derradeira missão em busca de ajuda. Um deles regressou ao acampamento e Roberto Canessa foi um dos dois que seguiu adiante. Após 10 dias de extenuante jornada encontraram o tropeiro chileno que os levou de volta à civilização.

Entramos, nos sentamos em silêncio, meio constrangidos. Na estante uma foto dos sobreviventes na neve. Na poltrona, sentada à minha frente estava sua velha mãe, atenta à história que seu filho contava pela enésima vez.

Roberto foi nos desvelando algo do drama com uma honestidade e simplicidade que me surpreenderam. Tomei coragem e lhe perguntei qual havia sido o momento mais difícil. Rápido devolveu “ah, foi depois do deslizamento”, fazendo menção à avalanche que os atingiu 16 dias depois do acidente. Mais oito companheiros morreram nesse dia. Parecia que qualquer esperança se esvaíra junto.

Queria lhe perguntar também qual havia sido seu momento de maior esperança, mas hesitei e não consegui. Na verdade, a pergunta se tornou desnecessária. Quando ele nos relatava as agruras da fuga das montanhas, contou-nos como foi do cansaço e desespero a uma experiência de renascimento da fé. Numa noite, ao entrar em seu saco de dormir, costurado com o isolante térmico da fuselagem do avião, viu uma lua gigantesca surgir por detrás da montanha. Também identificou as Três Marias. E pensou, “isso é o mesmo que vejo em casa, a casa onde eu quero chegar e para chegar lá eu preciso continuar nesse caminho”.

Suas muitas menções a Deus provocaram a pergunta de uma estudante, “se você não cresse em Deus, pensa que teria sobrevivido?”. “Não sei, pergunte isso a Ele. Quanto a mim, penso que não crer em Deus é um ato de grande soberba”.

Hora de ir. No jardim, ele me diz “incrível como essa história chama tanto a atenção”. Precisamos de heróis, Roberto. Hoje quisemos que você cumprisse esse papel. Vou embora pensando se talvez não devêssemos lhe pedir desculpas por isso.

Foto: © Copyright Viven 2007

20 novembro 2007

Visões laicas


Você já deve saber que o Uruguai é um país laico. O que muitos não sabem é que esse é um processo que remonta à gênese da identidade do país, no final do século XIX e início do século XX.

Essa gestação da identidade nacional ocorreu não sem tensões e lutas, na administração de cemitérios e hospitais, na educação e registro civil, na formação das leis do país (uma lei aprovando o divórcio, considerando a vontade da mulher ao pedí-lo, data de 1907!) e em confrontações públicas, às vezes hilárias, se não fossem desrespeitosas...

Na década de 20 do século passado, anúncios colocados nos principais jornais do país convidavam a população a churrascos grátis, ao ar livre. O detalhe geográfico e temporal impressiona. A carne era assada na praça em frente à catedral, justo na sexta-feira santa. A fumaça da gordura racionalista da época penetrava nos vãos do templo barroco e enlouquecia igualmente a clérigos e ovelhas (aquelas ironicamente chamadas pela igreja de “leigos”, do latim
laicu, numa triste e irônica coincidência…ou não…).

Atrás das churrasqueiras estava uma elite intelectual e política que bebeu em sua formação do liberalismo e positivismo francês, além da maçonaria, e que estava em aberta luta contra o poder da Igreja Romana. Histórias interessantes às quais voltarei em momento oportuno.

Por agora, queria lhe deixar um excerto do saudoso Norberto Bobbio a respeito da diferença entre uma visão religiosa do mundo e da história, distinta de uma visão de mundo laica. Que seriam essas visões laicas da realidade? Para conhecer o outro, nada melhor do que deixar ele mesmo se apresentar e falar de si. Deixo-lhe então com o Norberto. Desculpe-me o texto longo. Como da
última vez você desligou a máquina e descansou os olhos, imagino que deva estar mais disposto agora. Boa leitura e até a próxima!

“Para dizer a verdade, mais que de uma ética laica, deveríamos falar de uma visão laica do mundo e da história, distinta de uma visão religiosa. Pode-se também falar, com uma linguagem compreensível por todos, de distinção entre uma concepção sagrada e uma concepção profana ou desconsagrada, ou ainda, como se prefere dizer hoje, dessacralizada do mundo e da história, distinção que teria tido sua origem no início da era moderna, no período weberianamente chamado de ‘desencantamento’.

Segundo o cristão, ao lado da história profana existe uma história sagrada, da qual o único guia seguro é a Igreja ou as diversas igrejas que retiram sua inspiração das Sagradas Escrituras.

Para o laico, a história é uma só, e é a história em que estamos imersos, com nossas dúvidas não resolvidas e com as nossas questões inelimináveis, cujo guia é a nossa razão, de modo algum infalível, que extrai da experiência os dados a partir dos quais se pode refletir.

Esta é uma história por detrás da qual e acima da qual não há nenhuma outra história da qual esta nossa história seria apenas uma prefiguração imperfeita, um reflexo infiel ou mesmo enganoso.

Na visão do laico, falta a dimensão da esperança em um resgate final, em uma redenção, em uma palingênese, numa palavra, na salvação. Não pode haver salvação numa visão do mundo em que não existe sequer a idéia de uma culpa originária, que teria maculado para sempre toda a humanidade desde a origem e ao longo dos séculos.

Para o laico, a história não se desenrola segundo um percurso predeterminado, e já traçado desde o início, entre uma culpa original e uma redenção final. É uma história de eventos de que se pode, ainda que nem sempre, encontrar a concatenação das causas, mas em que não se pode chegar à atribuição de culpas.

É uma história da qual é inútil procurar um sentido último, porque um sentido último não existe ou ainda não se revelou de modo claro o suficiente para nos levar à aprovação.”

Norberto Bobbio, em Elogio da serenidade e outros escritos morais, UNESP, 2002.

Foto: Palácio Legislativo, Montevidéu- Legislación
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16 novembro 2007

Que tal ler um livro?


Desligue o computador e vá ler um livro. Mas não um qualquer. Busque um que tenha uma visão de mundo distinta da sua.

Todos nós, fundamentalistas, ecumênicos, conservadores e liberais, demasiadas vezes caímos na mesma tentação. A de ler apenas o que nos convém, o que nos agrada e que reforça o que já acreditamos.

Quando incorro nesse pecado, giro ao redor de meu eixo e não desenvolvo aquela capacidade de enxergar além. Esse olhar que me leva não apenas a alargar a fronteira da compreensão, mas também a voltar com uma percepção renovada (revisada?) e quiçá mais autêntica de quem eu sou.

Momento para uma digressão. Convém lembrar que há algo fundamental acerca do prazer na leitura. Parece que foi o Borges (não eu, o outro, o Jorge Luis) quem defendia a idéia de não ler um clássico somente por ser um clássico. Se a experiência é frustrante, dizia ele, feche o livro sem culpa.

Meu homônimo tem razão, em especial quanto às novelas, os contos e as poesias. Ainda assim penso no benefício de ler aquilo que me é diferente, mesmo ou em especial o que não me agrada. Examinar idéias e cosmovisões alheias, que me provocam e desafiam.

Compartilho uma mui humilde lição de casa à qual me dedico no momento, lendo o aclarador “Exploring Protestant Traditions, an invitation to theological hospitality”, de W. David Buschart (IVP, 2006). Uma rica ainda que concisa jornada pelas tradições reformada, luterana, wesleyana, anglicana, anabatista, pentecostal e dispensacionalista. De cada uma o autor se acerca de sua história, contexto eclesiástico, suas ênfases hermenêuticas e teológicas.

Sua leitura tem me ajudado a construir pontes de entendimento e cooperação, necessárias em um mundo evangélico tão fracionado. O óbvio, confesso, é que esse exemplo é tímido, pois ainda é leitura dentro de um escopo circunscrito de tradições. Talvez seja apenas um bom passo, um começo que me socorra no plano estreito de minhas idéias.

Penso que quem quer viver e servir em outra cultura tem que aprender a ler as vozes dos novos “atores” que conhece, os mestres, os que formam e desinformam, os amigos, vizinhos ou inimigos. Os que são a favor ou muito pelo contrário. Suas razões e também incoerências. Os que me ensinam e também agregando minha própria disposição de adicionar ao caldo minhas reações e percepções, com santa abertura para repartir tudo o que de precioso eu possa trazer a essa conversa.

Se você leu até aqui é porque não acatou a sugestão da primeira frase. Talvez o faça agora. Apague a máquina e agarre um bom livro. Nos vemos na próxima.

Foto: Leggendo
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14 novembro 2007

O que o prazo de validade uniu...



A quantidade de divórcios aumentou 80% nos últimos 10 anos aqui no Uruguai. Mais da metade dos que se casam a cada ano se divorciam algum tempo depois.

Um psicólogo da terra, Gustavo Ekroth, anda defendendo que a durabilidade de um casamento se sustenta em quatro pilares: atração sexual, amizade, admiração e projetos em comum.

Ele ainda sustenta(1) a curiosa teoria de que o matrimônio deveria ser um contrato com prazo de validade, que se pode renovar, ou não, conforme o desejarem. Para ele, “ainda que agora estejam bem, não têm porque ser assim a vida inteira; assim deixariam de prometer no altar coisas que terminem sendo uma mentira”.

Já imagino a cena. O conselheiro no curso de noivos lhes pergunta “por que só um ano, não querem logo partir para três?”. Ou, ao revés, “acho dez anos muito arriscado; vamos colocar cinco e ver como anda o negócio?”.

Pensando bem, se esse papo de compromisso e permanência já não manda tanto, proponho que radicalizemos.

Criemos um novo sistema de avaliação diária do casal! Por meio de pontuação, e cores que nos auxiliem já que nossa inteligência emocional não anda lá essas coisas.

Acima de 7, cartão verde, passou. Entre 4 e 6, dá-lhe um cartão amarelo. O imbróglio é feio, demanda convocar uma reunião urgente para recompor as metas. Abaixo de 4 não dá. Segue um cartão vermelho junto com o singelo texto “dessa vez não deu, procure outra” (ou outro, sei lá).

Para evitar indelicadezas, nada de mostrar a nota e o cartão assim, cru, na cara do outro. Deixemos discretamente a avaliação de nosso companheiro sobre o criado-mudo, a cada manhã ou noite, como lhes convier.

Outro dia passei pelo “mudinho” e, para minha surpresa, havia um 10. Cartão lindo, novinho, nunca antes usado…. Emocionei-me, fui às nuvens. Devo ser como o vinho, conjeturei. Melhoro a cada ano que passa.

Abrupto minha amada esposa irrompe, de um peteleco vira a nota a um 7, enquanto diz “já falei pras crianças não mexerem aqui…”.

Quase acho que foi algo premeditado (vislumbrei o esboço de um sorriso maroto), se bem que nem ligo, até gostei do 7... Mas ainda confesso que tenho saudades dos tempos em que o “só a morte nos separará” já era suficiente.

1 Em “Hasta aquí llegamos”, El Observador, 10/11/2007

(Foto: © Lised Márquez)

12 novembro 2007

Carroças 2... Ainda sobre os "hurgadores"

“Espetáculo próprio dos tempos de colônia!” Assim leio em editoriais de jornais prósperos e conservadores do país, referindo-se à mesma temática do artigo anterior: os hurgadores, ou aqueles que procuram com afinco sua subsistência em meio ao lixo.

Ouço queixas acerca da falta de sinalização das carroças, dos maus-tratos aos animais, da suposta sujeira que fazem (eu pensei que eles ajudavam a diminuir o lixo, e não o contrário), do perigo no trânsito e alguns ainda apontam para a suposta ameaça inerente daqueles “outros” que remexem nosso sagrado lixo bem ali, em frente de nossas casas.

Dizem que há 8 vezes mais desses trabalhadores aqui em Montevidéu do que a média dos que se encontram em outras cidades latino-americanas.

Eu estaria longe de defender um ofício tão pouco nobre. Gostaria que fosse abolido. Desejaria que os condutores desses veículos eqüestres, muitas vezes crianças, estivessem aproveitando sua infância e adolescência de modo mais lúdico e salutar.

Mas fingir que o problema não existe ou estigmatizar quem mais sofre com essa condição não irá nos ajudar.

Uma sociedade que seja socialmente fracionada entre “nós” e os “outros” (diga-se que no Brasil o abismo infelizmente é bem maior) não possui bons prospectos para o futuro.

Falar de futuro nos remete à idéia de esperança. Tenho uma, que ainda busco alimentar. A de que o evangelho de Cristo transforme perspectivas, atitudes e políticas públicas que gerem um mundo com abismos menores e o fim de certas ocupações, que na verdade nunca deveriam ter existido.

Seria um bom começo ver esse tema sendo abordado no sermão do próximo domingo.

(Foto: © Tali KF)

11 novembro 2007

Crianças da carroça

“No te enojes! No te enojes!”. Ele a agradecia, sem lhe olhar nos olhos, repetindo essa frase que a princípio Ruth não conseguia entender.

Voltávamos à casa depois da festa de nossa filha e minha esposa resolveu entregar alguns excedentes ao “hurgador” que passava por aí.

“Hurgadores”, do verbo “hurgar”, que quer dizer “revirar, inspecionar, procurar com afinco”. Aqui, na capital do país, é cena comum cruzar com a carroça de um hurgador, muitas vezes acompanhado de menores de idade, que mais facilmente entram nos contêineres verdes onde os sacos de lixo doméstico são depositados. Há um desses recipientes em cada quadra. Buscam de tudo o que se possa aproveitar.

Diferentes estimativas dizem que há entre 5 e 10 mil hurgadores em Montevidéu. Talvez mais de 20 mil pessoas dependam economicamente dos que “procuram com afinco” no lixo.

No começo, Ruth não entendeu o que ele quis dizer. Depois caiu a ficha. Como ele havia pedido se ela também tinha alguma roupa de criança que pudesse lhe prover, ele teve medo e lhe pediu desculpas à maneira em que, traduzido livremente, seria “não se chateie ou se incomode comigo”.

Como não me incomodar com a pobreza, com a fome, com a necessidade absoluta?

Montevidéu aparece hoje em manuais de “missão” com especial destaque para a chamada área menos alcançada com o evangelho, talvez de todas as Américas. Desde Punta Carretas até Carrasco, passando pelo bairro judeu de Pocitos (mistura de Copacabana-Leme-Leblon), concentra-se a população mais rica do país, com uma quantidade ínfima de igrejas evangélicas ou supostamente de cristãos espalhados por essa zona.

Uma boa quantidade de recursos das “missões evangélicas” é mobilizada para essa área. Novos missionários, especialmente de países mais ricos, com recursos para manter projetos nessa vizinhança, vão aos poucos sendo atraídos para a região.

Os resultados ainda são tímidos. Há que investir mais. Os ricos também sofrem, têm carências, também precisam de salvação.

O pobre hurgador segue seu caminho. Quase culpado por nos incomodar com seus pedidos e necessidades.

Fico aqui pensando se Deus não pensa em pregar uma peça na laica e culta sociedade uruguaia. Já pensou se ele usa esses homens, mulheres e crianças da carroça para revolucionar esse país com o evangelho de Cristo?

Eu não me “incomodaria”. Continuo “procurando com afinco” uma melhor explicação para nossos preconceitos e estratégias missionárias.

(Foto: © Ivon Ruiz)

08 novembro 2007

Parabéns, do Mario

Foi um encontro inesperado. Justo naquele dia em que celebro a certeza dos anos que já passaram e o incerto dos que virão.

Ele moveu-se ligeiro da esquina da estante direto ao sofá da sala. Resolvi papear. Na verdade, mais ouvir do que falar.

Em uma tacada ele me disse, “Feliz Aniversário”. Levantei os olhos incrédulo. Como ele sabia?

Mario é desses personagens controversos e apaixonantes. Criticado por seus vínculos com a esquerda radical (qual esquerda de verdade não o é, para o bem e para o mal?), sempre foi habilidoso como poucos, bem poucos, com a pena na mão. Digo “pena”, confesso a malvadez, por causa de seu longo percurso.

Quatro anos depois que a I Guerra Mundial acabara (não faça as contas, que é deselegante, o Mario pode se chatear) nascia o homem em Paso de los Toros, Uruguai. Lido e apreciado pela juventude de numerosos rincões. Viveu 60 anos com o amor de sua vida, Luz López Alegre, que partiu não faz muito. Não quero parecer desrespeitoso, mas como poderiam ser infelizes no matrimônio com esse nome?

Deixemos atrás o devanear e voltemos à sala, cenário do colóquio. O Mario, ao me felicitar, foi desusado e me falou da morte. Logo hoje? Narrou-me seus dilemas, angústias, suas indagações sem resposta.

Ao fim, depois daquela pausa que os poetas sabem fazer (às vezes eu tento arremedar, mas fica apenas parecendo que observo a sujeira da parede, que cochilei ou engasguei…), concluiu que ao menos sente algum consolo em seguir perguntando.

Eu me calei. Razão simples. Se eu não conseguir ouvir as perguntas que ele me faz (boas questões formula o tipo) nunca poderei ambicionar qualquer resposta.

Sabe dar bom presentes esse Mario. Veja o que ele me regalou.

Happy Birthday

¿Cómo será el mundo cuando no pueda yo mirarlo
ni escucharlo ni tocarlo ni olerlo ni gustarlo?
¿cómo serán los demás sin este servidor?
¿o existirán tal como yo existo
sin los demás que se me fueron?
sin embargo
¿por qué algunos de éstos son una foto en sepia
y otros una nube en los ojos
y otros la mano de mi brazo?
¿cómo seremos todos sin nosotros?
¿qué color qué ruidos qué piel suave qué sabor
qué aroma
tendrá el ben(mal)dito mundo?
¿qué sentido tendrá llegar a ser protagonista del
silencio?
¿vanguardia del olvido?
¿qué será del amor y el sol de las once
y el crepúsculo triste sin causa valedera?
¿o acaso estas preguntas son las mismas
cada vez que alguien llegue a los sesenta?

ya sabemos cómo es sin las respuestas
mas ¿cómo será el mundo sin las preguntas?

Happy Birthday em Inventario Uno, Editorial Sudamericana, © 1995 Mario Benedetti
Agarrei o livro do Mario e me deparei súbito com esse poema, logo quando celebrava meu natalício.

(Foto: do Mario, claro - © Copyright 1996-2000 Clarin.com)

05 novembro 2007

Mãos que trabalham também descansam?

“Você se lembra de nossa última conversa?” Não, não era razoável que pudesse recordar. Eu era uns tantos quilos mais novo, estava por sair da universidade. Fazem exatos 15 anos.

Voltei a ver o Sr. Jacques Beney em um recente ajuntamento mundial da IFES. Não o havia visto durante todo esse tempo. Logo o reconheci, e decidi revelar-lhe como havia me abençoado àquela época e, na verdade, desde então.

Contei-lhe como sua dica simples me havia ajudado tanto. Resumindo, ele me ensinou a orar a cada manhã, com as palmas das mãos viradas para cima, recebendo de Deus o chamado que Ele tinha para minha vida, assim como as forças e a sabedoria para cumpri-lo nesse dia.

Antes de dormir deveria voltar a orar, com o mesmo gesto das mãos, dessa vez devolvendo ao Senhor o chamado, que é dEle, e assim entregando tudo em suas mãos, para que pudesse dormir em paz.

Disciplina e gesto tão simples, mas reveladores de uma profunda verdade. Tudo o que faço na vida deve beber dessa fonte que é o chamado de nosso Deus. E preciso saber descansar, recordando-me sempre que o trabalho é dEle, e que não me cabe a última palavra ou responsabilidade.

Meu caro amigo suíço Sr. Jacques, devo lhe dizer que fui desobediente algumas vezes. Já abracei causas e preocupações como se fossem somente minhas. De um modo que, pensava eu, o fim do mundo pronto chegaria por minha ação ou omissão. Pura tolice. E arrogância.

Minhas mãos aos poucos delatam as marcas da lide diária. Elas sofrem mais quando não as estendo pelas manhãs e ao deitar-me. Mãos que laboram precisam descansar. E elas o farão quando aprenderem a receber, e a entregar.

Descanse feliz, minha cara mão.

(Foto: © Hercules Milas)

31 outubro 2007

Acho que sou uma árvore

“El sendero que a mi me ha tocado
Me ha levado lejos de mi hogar
Pero la distancia no ha logrado
Hacerme olvidar de donde vengo
A la sombra de un recuerdo nuevo
Redescubro una vieja verdad
Puede el árbol extender sus ramas,
pero sus raíces no se moverán.”

De Donde Vengo
, Alex Alvear
(trecho da linda música desse artista equatoriano)

Primeiro veio a pergunta clássica: “você gosta de viver aqui?”. Resposta fácil: “sim, claro, me encanta, etc.”. Depois aquela que me travou a língua: “aqui você se sente um estrangeiro?”.

Era o simpático pintor faz-tudo que volta e meia chamo para que me salve em algum profundo dilema dos cuidados domésticos. Ele e eu falamos bastante. Dessa vez, um bom mate regou a conversa. Mas aquela pergunta fez com que eu me perdesse em palavras sem sentido enquanto pensava no assunto.
Quando ele se foi, voltei a matutar sobre o tema.
Sou de fora, o “estrangeiro”, e não haverá tempo ou amor pelo novo país que mude isso. O sotaque, minha visão de mundo, meus preconceitos e limitações, sempre me denunciarão. Reconhecer isso talvez me ajudará a pesar mais minhas avaliações e ações no novo mundo e cultura.
Mas exatamente aí talvez estejam uma virtude e potenciais preciosos. Quando eu sei “de donde vengo” posso valorizar minhas raízes e as contribuições que possa dar no novo lugar onde estou inserido. Com respeito, ponderação e muita escuta, trarei a minha vida e história na arte de tecer o Reino, junto com a riqueza e diversidade dos fios que os discípulos do Caminho dessas terras também trazem à essa obra.
A árvore viajou, suas raízes não saíram do lugar, mas ela espera que seus frutos possam alimentar, seus ramos prover sombra e abrigar em outras paragens. Difícil imaginar maior privilégio e aprendizado que esse.
(Foto: © Maurice Alleaume)