05 dezembro 2008

...mas não sou herege



O título forte da reflexão anterior, “sou trevas”, ainda que com a ressalva de que seja o primeiro passo na direção de rejeitar o “andar em trevas”, me leva inevitavelmente ao necessário complemento: “mas não sou herege”.

Pode ser que eu me saia melhor do que estava antes da primeira linha. Ou pior, mas não me julgo, como se isso fosse possível. O juízo estará em seus olhos e em seu coração.

Contarei com a ajuda de uma testemunha a quem convido a esse tribunal. Minha memória não anda boa, mas creio que era conhecido em sua época como “abade Antão”*. Viveu lá entre o século III e IV d.C. e foi considerado um dos “pais do deserto”, nesse que foi um movimento de rejeição à mundanização da fé cristã.

Vivia como eremita, radicalizado (deveria dizer arraigado?) em seu simples estilo de vida. As pessoas vinham até ele para pedir conselhos, orientações, alguma palavra de luz que penetrasse no mundo de trevas em que jaziam.

Parece que ele sempre a tinha pronta e fresca. Mas também suponho que soubesse que seu isolamento não o deixava imune às armadilhas da tentação e do pecado. A morte tinha seus mensageiros. E ela chegou um dia disfarçada de um punhado de “discípulos”, supostamente ávidos por palavras de sabedoria, mas na verdade enredados em suas próprias más intenções.

Logo quiseram informar seu “amado mestre” o que ouviam a seu respeito. Algo assim, “amado mestre, desculpe-nos a ousadia, mas é que ouvimos dizer que tu és um mentiroso”. Antão deixa sua inseparável cuia e colher a um lado, levanta os olhos, franze os lábios pensativo e lhes responde “sim, é verdade”.

Surpresos, mas não totalmente desprevenidos, seus “discípulos” continuam, “também ouvimos dizer que tu és cobiçoso”. Antão passa então a mão por sua única e puída túnica antes de lhes responder, “é verdade, sou cobiçoso”.

Um pouco confusos, mas sem dar trégua, seus “amigos” seguem, “e também imagine que ouvimos dizer que tu és adúltero”. O eremita passa os olhos pela parede rochosa da cova onde havia decidido viver sozinho, antes de respirar fundo e dizer “também é verdade que sou adúltero”.

Sem saber bem o que passava, ainda atiram uma última pedra, “também ouvimos que és um herege”. Rápido o profeta lhes atira de volta, “não, não sou herege”.

Após um silêncio embaraçoso e alguma troca de olhares, talvez o mais sábio e humilde de seus visitantes, lhe propõe “não entendemos, pode nos explicar?”.

Antão olha-os com amor, antes de lhes esclarecer, “as primeiras acusações eu as faço a mim mesmo todos os dias, em confissão, arrependimento, para que a luz do Senhor invada as minhas trevas e me salve”. “E a acusação de ser herege?”, insistem. “Herege é aquele que está afastado de Deus, longe de sua Palavra. E não estou assim, porque minha confissão e meu arrependimento me levam todos os dias para perto dele.”

Em silêncio se vão. Também aqui me calo, para poder voltar à saudável e diária disciplina da confissão e do arrependimento.


* em minha época de estudante universitário li esse livreto, que se não me engano tinha por nome “Os Pais do Deserto”. Pode ser que o nome do profeta eremita seja outro (seria abade Agatão?) e minha memória subjetiva me leva a reconstruir essa versão pessoal que lhes apresento da história. Desde então busco carregar comigo essa importante lição espiritual desse longínquo mestre do deserto.


Foto: ©
The wind blows where it wishes. You hear the sound of it, but to where it goes you cannot tell. So is it with everyone who is born of the Spirit.
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17 novembro 2008

Sou trevas



Sou trevas, mas não caminho em trevas. Conseguiria explicar essa equação?

Não andarão em trevas aqueles que o seguirem, assim prometeu o Mestre. Um título nobre e bastante diferente os acompanharia: filhos da luz.

Ler o evangelho de João nos leva e nos traz ao redor dos dilemas e tensões da pugna entre a escuridão e a clara luz.

Uma chave pra abrir a equação nos é entregue pelo próprio “Eu Sou”. Numa de suas muitas explicações de si mesmo registradas no quarto evangelho, aparece essa em que assim se define, “eu sou a luz do mundo”.

Quando sei quem é a luz e onde está a fonte que iluminará a escuridão do mundo, conto então com a ajuda vinda do século XVI, do místico João da Cruz, para me ajudar a entender o possível e desejável encontro dessa luz comigo mesmo.

Para João da Cruz, nós somos as trevas, diante do único que é luz. E a luz, quanto mais perto dela estivermos, mais consciência provoca em nós de nossa própria escuridão.

Ou seja, quanto mais próximo estou da luz, mais reconheço o quanto de trevas há em mim. Mais consciente me torno de minhas limitações, de meu mal, de meu pecado.

Se perto da luz estou, mais pecador me percebo. Claro! Se longe da luz estivera, na penumbra ou escuridão, mais difícil seria ver o quão desconcertado e equivocado eu sou. Não conseguiria, ou pelo menos assim o fingiria, ver meus próprios erros.

Mas se me aproximo da verdadeira luz, ela me invade, penetra em minhas trevas, me expõe, e me enche com essa luz de vida e de verdade.

Penso que sou luz e que posso iluminar o mundo? Ledo auto-engano. Mas há paradoxo e esperança! Se reconheço a única luz que há, ainda que ela me invada em um doloroso processo que expõe a mim mesmo e aos outros quem de verdade eu sou, poderei ainda de alguma forma refletir essa luz, que não é minha, em um mundo que tateia no escuro.

Posso ser “filho da luz”. Posso rejeitar o “andar nas trevas” para experimentar a vida que há nessa luz. Posso até, quem diria, refletir essa luz que apontará o caminho para que outros cegos como eu sejam liberados da escravidão da escuridão.

Mas começa assim, bem simples, quando primeiro reconheço que eu sou trevas. Nada mais, nada menos, para que a luz assim cumpra o seu papel.


Foto: © IT 6
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18 outubro 2008

O passado do santo e o futuro do pecador



Em meio à turbulência financeira mundial, certo personagem tem aparecido bastante e há sido citado com freqüência. Trata-se do homem mais rico do mundo, Warren Buffet.

Fala-se de suas compras de ações quando todos as estão vendendo ou de seu caráter de guru financeiro, cobiçado por ambas as campanhas presidenciais para ser algo não menos que o próximo secretário do tesouro norte-americano.

Questionado em uma entrevista acerca das vítimas e culpados da crise mundial, esquivou-se em responder. Quando pressionado, disparou: “cada santo tem um passado e todo pecador tem um futuro”.

Do alto de seus 78 longos anos, creio que o senhor Buffet regalou-nos uma frase de profunda sabedoria. Posso não concordar com a visão capitalista do homem nem ser um de seus devotos admiradores. Mas creio que é preciso reconhecer nessa resposta uma importante verdade espiritual.

Trata-se do seguinte. Por mais “santo” ou correto que eu seja, ou que busque ser, sempre ainda terei a oportunidade de enfiar o pé na jaca. Essa crua verdade deveria me levar a cultivar a humildade, a moderação e a vigilância. Ela me ajudaria a evitar a arrogância e os abismos a que ela pode me levar.

Há algo mais, não menos importante. Por mais pecador que eu seja, por mais mancadas que eu tenha cometido, o evangelho da graça e da fé em Cristo parece sempre nos apontar a possibilidade da volta, da segunda chance. Ao sinalizar o caminho de saída, nos permite um alívio, um respiro, um fio de esperança no meio da escuridão.

Uma secretária que trabalhou com o primeiro secretário geral da IFES, Stacey Woods, disse o seguinte depois de trabalhar com ele por um período, “ele é terrível em seus relacionamentos pessoais, mas possui uma tremenda visão de Deus e confiança nEle – e Deus sim trabalha através dele apesar do que ele é.” 1

“Apesar do que ele é” poderia soar algo pesado ou parecer uma crítica injusta, mas talvez seja muito melhor ser mais realista com nossos heróis, do que idealizá-los como “santos” com um passado irrepreensível. Poderíamos cair na tentação de projetar modelos que seriam inalcançáveis, talvez na mesma medida em que seriam irreais, inventados.

Quem sabe isso nos ajude, a todos nós, pobres e miseráveis pecadores, a caminhar com cuidado e confiança, porque há Aquele que nos abre um futuro e uma esperança.

1 Citado em "C. Stacey Woods and the Evangelical Rediscovery of the University", A. Donald MacLeod, IVP Academic.

Foto: © DSC06973
Upload feito originalmente por Ale J. Ven.

06 outubro 2008

Genes adúlteros



Você já notou esse modo comum e curioso de dar uma notícia que atribui a fenômenos naturais características ou condutas que são humanas? Por exemplo, manchetes como “chuva intensa causa morte na Dutra”, ou “a neblina provocou vários acidentes na Marginal”.

Ora, é sabido que a chuva ou a neblina não são malévolas, nem tampouco se pode atribuir a elas características inerentes de psicopatas assassinos em série.

O que esse modo de dar as notícias esconde é a real responsabilidade humana de gente que foi imprudente diante de condições meteorológicas adversas. Se os condutores não tomam as devidas precauções debaixo de circunstâncias desfavoráveis, ou se o governo não cuida bem do pavimento das estradas, então não se pode ocultar a responsabilidade humana e social envolvidas.

Não faz muito tempo saiu uma reportagem em um jornal uruguaio acerca da descoberta do gene da infidelidade masculina. Segundo essa investigação, é possível duvidar da capacidade dos homens que possuem uma variante do gene 334 de manter uma relação estável com sua esposa.

Penso nos possíveis desdobramentos dessa “descoberta”. O marido chega a casa tarde e diz para a esposa, “foi mal, querida, mas meus genes me levaram a isso, não tive culpa”. E a esposa, muito compreensiva e ciente das recentes pesquisas científicas, lhe devolve “não liga, amor, sei que são seus genes...”.

Isso me faz lembrar quando eu flagrava uma de minhas filhas beliscando a irmã e com ar de inocência se justificava, “não fui eu, foi meu braço que fez isso”. O pior é que aparentemente ela acreditava ser essa uma boa explicação.

Talvez o mesmo possa acontecer com esses pobres e ímpios seres humanos destinados ao pecado por sua carga genética. Passam a acreditar que são certas circunstâncias do destino que o levam a um ou outro comportamento perverso. “E quem disse que é perverso? Somos assim, e ponto”.

“Estou cansado”, “ando insatisfeito”, “ela não me corresponde como eu gostaria”, e por assim segue a infindável descrição de “causas” para nosso comportamento e escolhas. Sempre algo exterior, circunstancial, uma culpa atribuída às condições externas ou depositada sobre a atitude do outro.

Creio que ainda que se comprove uma real influência de genes específicos sobre certos tipos de comportamento, ainda sempre poderemos falar de nossa determinante responsabilidade humana quanto às escolhas que fazemos. Mesmo que algo possa influir, ainda tenho o poder de construir, cuidar, levar em conta as condições adversas e assumir responsabilidade pelos caminhos tomados.

Menos mal que uma das pesquisadoras da tal investigação afirmou que “um homem que sabe que tem esse gene em seu cérebro pode manejar ou utilizar seu conhecimento e caráter para fazer frente e resistir a essa inquietação que faz tremer o matrimônio ou a relação do casal”.

Não será a chuva, neblina ou os genes que farão com que deixe de cuidar, prevenir e assumir o que faço.

Foto: © zeitnot
Upload feito originalmente por SeBa MaYa

20 setembro 2008

O Nordeste é ali



A noite avançava enquanto a fresca brisa do mar carioca abrandava o cansaço da já longa reunião. Jovens lideranças evangélicas intercambiavam idéias e reflexões acerca de um futuro conclave da juventude evangélica nacional.

Chegou-se o momento de discutir o local do tal evento. Meu bom amigo carioca, anfitrião dessa tertúlia, propôs com firmeza “o encontro tem que ser no Nordeste!”. “O Nordeste é longe!”, rebateu outro nobre companheiro. Sem titubear, meu amigo contra-atacou “longe pra quem?”.

O olhar espantado do interlocutor acerca do supostamente distante e inacessível Nordeste me fazia suspeitar que ele ainda não tivesse se dado conta do quanto seu comentário havia sido geograficamente autocentrado.

Ao fim, e resumindo, esse encontro não se realizou no Nordeste, o que foi uma pena. Prevaleceu uma péssima lógica sulista paulista que infelizmente valoriza apenas o que acontece em latitudes capricornianas.

Minha confissão de hoje é a seguinte. Sou paulista, como meu colega da proposta que prevaleceu. Nunca me achei lá muito preconceituoso, ainda que meu grande amigo carioca vivesse me alertando sobre como os paulistas pensam que São Paulo é o centro do mundo. E nem adiantava contestar. Se um bom bêbado nunca admite sua embriaguez, um bom paulista nunca deve admitir seu etnocentrismo.

Tinha sempre o benefício ou a possibilidade de mudar o endereço da crítica e transferir a acusação aos paulistanos. Eu, do interior, pensava o mesmo dos esnobes da capital, algo parecido à opinião dos argentinos em geral acerca dos portenhos (aí a piada óbvia e imperdível é que nesse caso eles estão certíssimos; mas como o objetivo aqui não é falar mal dos vizinhos tangueiros, volto à auto-crítica).

Foi só quando vivi na Inglaterra que tive a oportunidade de ver essas coisas sob uma perspectiva diferente. Talvez tenha se dado por sofrer na própria pele o preconceito. Os olhares, os comentários, o dito e o não dito. Sentia-me mal, e lembrava-me das queixas de amigos nordestinos. Eles tinham razão! Dói na alma ser discriminado e diminuído.

Posso ter meus defeitos, quem não os têm, mas ouvi-los da boca do estranho que se vê, ou se imagina superior a mim, provoca aqui dentro imediata reação.

Lembro-me dos comentários daquele nosso professor inglês acerca da corrupção na América Latina. Ele tinha razão, não havia como negar. Mas como não é bom ouvir críticas a alguém de casa por um desconhecido arrogante, a resposta veio rápida. Deliciei-me ao vê-lo tentar responder à forte reação de minha querida esposa, mencionando em classe os inconvenientes morais acerca do que os suíços fizeram com o ouro dos judeus roubado pelos nazistas, e outros pecadilhos europeus.

Se for para falar dos defeitos alheios, que nos lambuzemos antes no reconhecimento de nossos próprios. Creio que assim se pode chegar a uma perspectiva mais honesta e autocrítica da realidade.

Meu bom amigo carioca desfruta nesse momento de uma especial experiência de vida em terras catalãs. Já eu vivo e curto o auto-exílio em terras mais ao Sul. Seriam protestos silenciosos acerca de um Brasil que cada vez mais esparrama suas ambições de poder no mundo? Não, não estamos para tanto. Nem nós, tampouco o Brasil. Mas se o país estivesse mesmo com essa bola toda, ficaria louco de vontade de propor o Nordeste para a próxima sede da ONU.

Foto: © Caatinga
Upload feito originalmente por Marcio Fernando

04 setembro 2008

Amor líquido como sabão



“O fracasso de uma relação é com freqüência um fracasso de comunicação”
Zygmunt Bauman


Confesso que fiquei tentado em colocar o seguinte título nesse texto: “Uma garotinha de 5 anos resenha livro de Zygmunt Bauman”. Depois pensei melhor, imaginei que poderia suscitar incontáveis visitas ao blog pela curiosidade que tal frase provocaria nos mecanismos de busca na Internet, e daí optei por esse que está aí. Conto-lhes como ele surgiu.

Carolina, a tal garotinha do título abortado, que sucede ser minha filha caçula, viu um exemplar de “Amor líquido” descansando em minha mesinha de cabeceira. Curiosa, e dando seus primeiros passinhos com as letras, leu-me em voz alta a capa.

Ela saiu dali intrigada. Creio que o subtítulo não a ajudou muito, “Acerca de la fragilidad de los vínculos humanos”. Sim, minha versão é em espanhol e a pobre criatura ainda tem que aprender a ler em dois idiomas. O mundo é assim mesmo, cruel e injusto.

Passamos os dois ao banheiro, com o nobre propósito de lavar as mãos antes do almoço. Seu olhinho se iluminou, apontou para o pote de sabonete líquido e aí me disse triunfante “Amor líquido como sabão!”. Que pai, por mais insensível que fosse não concordaria com a brilhante e breve resenha que sua jovem filha acabara de fazer do livro de Bauman?

Estou apenas no começo do que me parece ser um excelente ensaio. O primeiro capítulo sobre como a gente se enamora e se desenamora (como se diz isso em português?) em nosso mundo é fabuloso. Creio que tem muito a ver com aquela estranha idéia, comentada aqui anteriormente, de colocar prazo de validade nos casamentos.

Foi outro dia, quando cruzei ao outro lado do rio e visitei minha livraria preferida, que resolvi acabar com essa pendência com o catedrático em sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia. Adquiri então esses quatro títulos: Amor líquido, Miedo líquido (la sociedad contemporânea y sus temores), Modernidad líquida, Vidas desperdiciadas (la modernidad y sus parias).

Tudo bem, reconheço que há muito “líquido” nesse pacote. Não tem problema, estou em dieta mesmo. Não por razões estéticas, claro. Nem porque minha esposa tenha insinuado que eu precisasse. Ou será que ela o fez e eu não entendi o que ela tentava me dizer? Espero que o Bauman resolva meu dilema no próximo capítulo.

Foto: ©
The soap dispenser formerly known as Gonzo
Upload feito originalmente por Andreas Reinhold

19 agosto 2008

De onde você é?



Outro dia me perguntaram, “Você é de Rivera?”. A pergunta me deixou com aquele sentimento indefinido entre a decepção e a esperança.

Algumas explicações são necessárias. Um tanto óbvias, me desculpe, mas vamos a elas. Sou brasileiro. Vivo no Uruguai, em sua capital, Montevidéu. Rivera é uma cidade na fronteira com o Brasil. Muitos aí falam português ou portunhol. Ser de Rivera poderia significar ser um uruguaio, mas um que tem esse forte sotaque da fronteira.

Não tenho ainda muita quilometragem uruguaia. No momento, 1 ano, 7 meses e 10 dias. Quase nada. Mas as ambições costumam ser grandes. Uma delas é a de querer se identificar com a gente do país que adotamos. Não é fácil, mas está aí a aspiração.

Outro dia confessei-a a um amigo uruguaio, “quero que as pessoas me confundam com um uruguaio”. Ele me olhou em silêncio, e depois disse bem sério “se for um húngaro, talvez ele imagine isso”. Amo a doce ironia uruguaia.

Nem ligo. Inclusive, como minha amada esposa não deixa que me esqueça, sou irônico, a assim renovo minha esperança. Ao menos algo estou aprendendo. É bem verdade que possa ter vindo do Brasil assim, desse jeito, mas nem me lembro bem. É sempre mais fácil ver defeitos nos outros. Eu disse defeito?! Bom, deixemos isso de lado por enquanto.

Volto a pensar nesses montões de missionários transculturais em tantas partes do mundo. Conheci vários. Leio muitas de suas cartas desde os confins distantes de suas pátrias amadas. Tem uma coisa que não aprecio nessas cartas. É claro que eu possivelmente também faça o mesmo. Mas como eu disse sobre os defeitos...

O que me incomoda é ver em muitas delas essa equação “eles” e “nós”. Os “outros”, os “nativos”, tão diferentes e tão indecifráveis. Às vezes isso se revela mais claramente. Outras, sutilmente. É a revelação de um detalhe mais pitoresco, a afirmação de um grande obstáculo ou desafio “nessas terras”, ou mesmo um pedido de oração para que Deus faça algo entre “eles”. Ou seja, é fácil perceber que se trata de um estrangeiro em terras alheias.

Matutei sobre o tema, confesso que também sou pecador, mas resolvi adicionar uma ambição à minha lista. Trata-se de imaginar que, se alguém que não me conhece venha a ler uma das cartas que envio do “campo missionário”, não consiga identificar de onde sou, imaginando que eu seja um obreiro qualquer trabalhando entre tantos outros na seara em terras uruguaias.

Cometo a ousadia de sugerir esse saudável exercício para colegas missionárias e missionários transculturais. Ainda que não mudemos a realidade de que somos de onde somos, e creio que esse é um grande benefício do trabalho em equipes multiculturais, ganharemos todos com o esforço sincero de identificação e integração nas culturas onde servimos.

Por aqui sigo com minha aspiração. Estou louco para me encontrar com aquele húngaro e ver o que ele me dirá.

Foto: © El Salvo
Upload feito originalmente por Libertinus

05 agosto 2008

"Nós nunca contamos almas"



A grande área envidraçada do auditório deixava ver a batalha das folhas verdes com o vento frio da primavera do Rhön.

Era maio de 2006, e minha atenção deixou por alguns momentos os embates da natureza nessa bela região da Alemanha. Creio que foi pelo desconforto com o que acabara de ouvir.

Observe que a expositora tinha excelentes credenciais. Apresentada como consultora de clientes como Tony Blair e Shell, não havia como negar o brilhantismo de sua exposição.

Ainda assim, o suor frio de minhas mãos e minha leve taquicardia denunciavam secretas intenções. Eu queria discordar! Ousadia ou tolice, não sei bem, e ainda podia ser um preciosismo de minha parte. Talvez fosse melhor concordar, ser desafiado por novas perspectivas, essas coisas.

Mas a mão impulsiva se levantou antes que minha cabeça pensasse bem. Quando vi já estava com o microfone em mãos, gaguejando e buscando fazer um contraponto à exposição.

Basicamente, foi uma reação ao uso de metodologias quantitativas para a avaliação da efetividade do ministério estudantil. Em resumo, tentei dizer o seguinte: os números não nos dizem tudo! Ou seja, podemos ter bons números e, na verdade, estar indo na direção equivocada. Ou, o oposto também é verdadeiro, números pouco expressivos mas ainda assim estar fazendo o que deveríamos fazer.

É uma questão delicada, mas quis dizer que os números, sem uma adequada interpretação dos mesmos e do contexto, podem nos enganar.

Sentei-me. Já quase sabia o que vinha. De maneira bondosa, bem explicativa, quase condescendente, fui desafiado a “abrir” meu entendimento e buscar meios mais efetivos de avaliar meu rendimento.

Foi aí que aquele senhor, em seus 81 anos, pediu a palavra e disse três frases: “Eu concordo com o jovenzinho. Nós nunca deveríamos contar almas! A única coisa que contamos é dinheiro!” (“I agree with the young boy. We should never count souls! The only thing we count is money!”).

Era Sir Fred Catherwood. Por muitos anos tesoureiro da IFES, genro do saudoso Martyn Lloyd-Jones, antes de se aposentar Sir Fred destacou-se no Parlamento Europeu, onde chegou a ocupar a vice-presidência.

Não preciso dizer que havia ganho o dia. Na hora do intervalo, deixei o casaco dentro do auditório e saí para respirar fundo o ar da fria Baviera (e chamam isso de primavera!). O coração já estava aquecido. Podia ser tolice, ou vã vaidade, mas o sentimento era bom, por certo que era.

Ano passado voltei a encontrar-me com Sir Fred. Lembrei-lhe do episódio. Ele se recordava do que havia passado. Mas não se lembrava que eu era aquele “jovenzinho".

Veja bem que foram suas palavras. E, acredite, minha maior alegria foi pelo “we never count souls”, e não por sua percepção de minha juventude. Desconfio que seus óculos o traíram quanto aos anos de vida que me atribuiu. A diferença entre seu palpite e minha real idade? Nem me lembro, não conto mais, “the only thing we count is money!”.


Foto: ©
Counting money
Upload feito originalmente por electrolyte2006

28 julho 2008

Responsabilidade rima com generosidade


(Série Histórias Agronômicas - VIII)

“…as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra” (Mc. 4:32)

O que teve seu início no cuidado, proteção e amor das mãos de quem semeou, ao fim também produz bênção para outros.

O que era pequeno teria se tornado grande e importante? Sim, mas veja bem que isso se deu através de certos critérios. E eles são o do serviço e o da adequação ao seu chamado.

Primeiro, o serviço. Se algo não servir para abençoar a outros, então para nada serve. Como tanta coisa no Reino, aquilo que se retém, se perde. Aquilo que se gasta e se investe na vida de outros, ao contrário, tem grande proveito.

Segundo, a adequação à sua proposta ou chamado. Não se pode esperar de uma hortaliça o que só um carvalho pode oferecer. Sempre é preciso revisar as expectativas para checar se elas estão em saudável perspectiva.

Concluímos essa série voltando ao interlúdio entre as parábolas agronômicas (Mc. 4:21-25), que nos revela que aprendizagem tem a ver com responsabilidade.

Que fazemos com o que aprendemos? Que
fazer com algo precioso que alguém recebe em suas mãos?

A metáfora da luz nos fala de diligência. Por isso o “se tem ouvidos para ouvir, ouça!” Se escutaram, se aprenderam, ponham em prática, assumam responsabilidade pelo aprendido, multipliquem-no.

O critério uma vez mais será o benefício de muitos. Ponham a luz em “um lugar apropriado”, para que ilumine bem, para que chegue a mais gente, para que ela sirva a um propósito útil.

Jesus conclui nos indicando que responsabilidade rima com generosidade (Mc. 4: 24-25). À primeira leitura, soam difíceis essas palavras de Jesus quanto ao princípio da reciprocidade.

Talvez aceitemos mais facilmente essa lógica quanto aos julgamentos. Se formos duros ao julgar, assim também seremos julgados. Parece razoável. E, pensando bem, também parece bem justo que a reciprocidade seja aplicada à generosidade.

Ou seja, se somos generosos ao dar e oferecer, ainda mais nos será dado. Esse recebido também será oferecido e assim sucessivamente segue o ciclo. Note que é algo distinto da sutil, ainda que terrível, distorção da “teologia da prosperidade”, onde o foco se dá na ganância de querer ganhar e acumular, algo voltado para si mesmo e seu próprio benefício.

Como todas as parábolas agronômicas nos confirmam, o foco deve ser o de produzir, multiplicar e abençoar. Quanto mais damos, mais recebemos, e é claro que isso demandará um processo de maturidade e crescimento na fé.

Assim termino o que parecia uma interminável série de pequenas reflexões sobre o capítulo mais agronômico de todos. Se algo lhe foi útil, aplique a lição. Seja generoso ao repartir, cultivar, melhorar, fazer crescer e aprofundar aquilo que apenas foi plantado. Quanto mais cabeças e mãos pensarem e trabalharem juntas, mais oportunidades a rima do título terá para funcionar.


Foto: © Sunset, upload feito originalmente por surplus-to-requirements-stan.

22 julho 2008

Nossa atitude com as coisas pequenas


(Série Histórias Agronômicas - VII)

“...é a menor semente que se planta na terra”. (Marcos 4:31b)


Quem já não passou pela experiência de ver um esforço pessoal ou uma pequena iniciativa ser minimizado ou mesmo desprezado?


E quem também já não teve atitude semelhante consigo mesmo ao desistir de algo por pensar que nunca chegaria a ser algo relevante?


Aquelas mãos que crêem e que sabem esperar são também as mesmas mãos que tomam a “menor semente” e a plantam na terra. Com esse pequeno ato e gesto, dão um enorme passo de fé.


“Uma vez plantado” (4:32a), ou seja, o ato de semear se junta ao poder latente da semente, e se transforma em uma ação conjunta de “fé” + “potência latente” para a grande obra que será realizada, exatamente graças a essa conjunção de fatores.


As mãos que “cultivam e guardam” (Gêneses 2:15) são as que, devido ao tamanho da semente, mais cuidado e proteção brindarão à pequenina. Mas também, e esse é um lindo paradoxo, mais confiança e fé nela terão quando a semearem, pois crerão no muito que daí poderá surgir.


Um diferencial importante se dá já desde o início. E esse tem a ver com a percepção do que é pequeno, da perspectiva e do olhar que cada um tem da situação. Se aplicarmos critérios “convencionais”, a semente seria algo pequeno e sem valor.


Por outro lado, uma atitude mais adequada poderia considerar o que já vem com a semente, e que muitos não vêem ou não valorizam. Reconhecer essa riqueza embutida, quase escondida, e seu potencial para crescer, produzir e multiplicar-se.


Também há algo mais além do poder da semente. Trata-se da experiência e conhecimento do semeador, que já viu o que acontece depois da semeadura, que aprendeu quando é melhor semeá-la, em que condições e de que maneira.


Esse é o conhecimento que vem da tradição e da vida. Nenhuma nova tecnologia poderá substituir a importância desse saber. Nem minimizá-lo, nem dizer que é de “pequeno” alcance.


Ao fim das contas (e da colheita), o que parece pequeno se tornará grande, mas nesse pequenino texto já não há mais espaço para pensar nos critérios para dizer se algo é pequeno ou grande.


Fica para a próxima, numa promessa latente, como a semente. Espero que você creia. Em mim? Não! Nela, na semente.

(Continua...)

Foto: © Marquicio Pagola

14 julho 2008

Fazer bem leva tempo


(Série Histórias Agronômicas - VI)


“…primeiro o talo, depois a espiga e, então, o grão cheio na espiga”. (Marcos 4: 28)


Às vezes me pergunto quando é que desejaria ver os resultados de um trabalho com o qual esteja envolvido. Minha primeira reação, e é bom que seja assim, é a de desejar vê-los rapidamente. Quero me certificar de que estou indo na direção certa, que vale a pena todo o empenho.


Entretanto, e acredito que assim o seja em uma ampla variedade de situações, demora-se até que seja possível discernir os primeiros frutos concretos de um esforço. Às vezes até me pergunto se um dia o veremos.


Essa parábola me ajuda a valorizar a importância das etapas, a reconhecer que comumente há um processo até que se possa chegar lá. Há que esperar para que o grão fique “maduro” (v. 29). Mesmo que seja difícil, é necessário aguardar o “tempo da colheita”.


Três rápidas lições. Primeira, é preciso perseverar ao longo dos processos, também levar em conta que freqüentemente são demorados, e assim não desanimar no meio do caminho (lembre-se de Eugene Peterson, para quem a perseverança é sinônimo de “longa obediência em um mesmo caminho”).


Segunda, é necessário desenvolver uma saudável capacidade de avaliar os processos, reconhecer os avanços e retrocessos, ser capaz de revisar com propriedade e sabedoria os passos e os meios pelos quais desejamos chegar aos resultados (em outro momento penso em voltar ao tema dos critérios que devemos usar em avaliações).


Terceira, a perspectiva da colheita é algo que alimenta nossa esperança. Isso acontece quando a escatologia não é usada como um escape e sim como alento e alimento na obediência prática e concreta do presente.


Como está sua disposição para perseverar sem que veja o resultado de seus esforços?


Compartilho algo que me ajuda. Espero que também lhe sirva. Busco imaginar como é que as próximas gerações de estudantes universitários se beneficiarão do trabalho que estamos desenvolvendo agora. Que tipo de ministério estudantil cristão encontrarão na universidade os estudantes que nela entrarem daqui a 5, 15 ou 30 anos? Como é que o que plantamos agora poderá lhes ser útil para que eles enfrentem com fidelidade e criatividade os desafios de seu tempo?


Pense nisso. Ficarei feliz ao ouvir suas idéias.


(Continua...)


Foto: © Yan Seiler

07 julho 2008

Quando “não saber” é uma virtude

(Série Histórias Agronômicas - V)

O poder da semente que sempre nasce e cresce é um mistério que o agricultor não entende (Mc. 4:27). Tampouco nós chegamos a entender.


Daí surge na memória o que Jesus disse acerca de Deus decidir revelar as verdades mais profundas do evangelho aos humildes de coração, ocultando-as dos supostamente mais sábios e entendidos.


Poderíamos então chegar à libertadora percepção de que o “não saber” aponta não somente para uma limitação de nossa capacidade, mas também para algo desejável para uma sã espiritualidade?


Examinemos rapidamente quando o “não saber” se tornaria uma virtude.


Um desses casos nos é revelado pela parábola da erva daninha (Mateus 13:24-30;36-43). Ela nos impede que nos coloquemos em uma posição de juízes, pois em verdade não o somos. Há somente um. Quando pensamos que “sabemos”, arriscamo-nos a arrancar a planta que cresceu da boa semente junto com a nefasta.


“Não saber” também é algo que nos ajuda a não nos afogarmos em uma tentadora necessidade de controlar os processos e os resultados, essa que acaba nos levando a uma ansiedade absurda. Evitando essa armadilha, podemos desenvolver essa confiança mais leve e descansada no Senhor.


Por fim, se pudéssemos entender tudo acerca do poder e do mistério embutido na semente que é a Palavra, poderia suceder que víssemos a nós mesmos como grandes e que percebêssemos a Deus e sua Palavra como pequenos e manipuláveis de acordo com nossos próprios interesses.


Difícil imaginar algo mais perigoso do que a religiosidade como instrumento de poder para que uma pessoa ou grupo levem a cabo suas próprias agendas.


Há muita virtude em confiar naquele poder que faz com que “a terra por si produza o grão” (v. 28).


(Continua...)


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Isaac Bonyuet - 2008 TrekEarth

30 junho 2008

Estaria o poder em minhas mãos?



(Série Histórias Agronômicas - IV)

O Reino de Deus é mais uma vez comparado a um homem que lança a semente na terra. (Marcos 4: 26-29)

Ao voltar a falar do trabalho como metáfora do Reino, Jesus nos comunica que a idéia do esforço que alguém investe em alguma coisa para produzir algo é um conceito importante no Reino de Deus.

O trabalho não seria fruto da Queda. Ele já estava antes, na mente e nos desígnios de Deus para a raça humana. No início, Deus plantou a humanidade em um jardim, para o “cultivar e guardar” (Gên. 2:15).

O que se passa depois do pecado e da desobediência crucial do homem e da mulher é que o trabalho passa a ser um processo que nos custará muito (Gên. 3:17). Haverá que trabalhar duro e muitas vezes parecerá que se trata de um esforço em vão (Eclesiastes).

Em nosso cotidiano, onde experimentamos frustrações em nossa experiência de trabalho, como é importante escutar as palavras de Jesus que resgatam o valor e a importância do trabalhador e de seu esforço.

Essas palavras de ânimo tornam-se ainda mais vitais quando reconhecemos a enormidade da tarefa, o muito que há por fazer, e os obstáculos no caminho.

Agora, uma ênfase em nosso esforço e no trabalho de nossas mãos não pode fazer com que creiamos que todo o poder e responsabilidade estejam nela, em nossas mãos. Pensar assim nos levaria à arrogância e à auto-suficiência.

“Noite e dia, estando ele dormindo ou acordado” (Mc. 4:27a), vemos que o que determina o fruto não é o nosso esforço (“dormindo ou acordado”) nem tampouco as circunstâncias (“noite e dia”).

Não há que carregar uma responsabilidade ou peso maior do que o que nos cabe ou do que podemos levar. Certamente isso nos arrastaria a uma experiência de culpa, desânimo, cansaço e frustração.

Também evita que pensemos que há que esperar pelas circunstâncias supostamente ideais ou mais adequadas para nosso trabalho e esforço. Infelizmente, essas “circunstâncias ideais” nunca chegam, sem falar de que podemos nos equivocar em sua avaliação.

“A terra por si produz o grão”, ou, em outra versão, “a semente sempre nasce e cresce” (Mc. 4:28a), é um consolo importante e uma esperança firme em um poder que não está em nossas mãos.

(Continua...)

Foto: © Jon Block -
Goldsmith
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23 junho 2008

Dificuldades, mas alegria



(Série Histórias Agronômicas - III)

Muita gente necessitada veio escutar essas parábolas que Jesus lhes contou. Ficavam de pé, à beira da praia, ansiosos por ouvir algo acerca do caminho. O Semeador então lhes falou que na vida há uma luta ativa contra: o esquecimento, a superficialidade e as tentações.

As sementes ao largo do caminho são o esquecimento. Elas nos falam da indiferença, da insensibilidade, da apatia. Também do perigo do “roubo” da Palavra e da esperança semeada.

As sementes no meio das pedras são a superficialidade. Aquela que se revela na falta de um bom fundamento, de sólidas motivações, de bons marcos de referência. Que brota da inconsistência e da falta de perseverança diante das dificuldades.

As sementes entre espinhos são as tentações. Até coisas boas, quando mal usadas ou mal enfocadas, tornam-se um desvio e um problema. Daí surgem as tentações da ilusão e do engano das “soluções” rápidas. Vem a atração do poder, e a tentação de usá-lo para si e não para o benefício dos outros (Marcos 10:42-45), afogando assim qualquer pretensão de bom fruto.

Talvez para animar-lhes a vencer essas dificuldades, o Semeador fecha a história com a alegria das sementes que produzem. Sua palavra final é uma de ânimo, para nos encher de esperança, apesar das dificuldades.

Humanamente, e visto pela lógica da produtividade, o semeador foi bastante ineficiente. Dos quatro tipos de terrenos, somente um produziu. Mas a lógica desse Semeador parece ser distinta.

De acordo com Ele, deve haver muita alegria com o que se passa com essas sementes: essas que escutam, aceitam e produzem.

Ao escutar, elas abrem espaço verdadeiro para que a Palavra faça sentido em suas vidas. Dialogam, interagem, guardam-na e preservam-na como um tesouro precioso.

Ao aceitar, talvez isso nos fale de um recebimento genuíno da Palavra, um acolhimento que abarca sua vida e que lhe dá novo rumo, novo sentido e novo norte.

Ao produzir, revela o que era mais importante para o Semeador. Foi Ele mesmo quem disse, ao terminar essa desafiante história, “o que tem ouvidos para ouvir, que ouça”. “Escutar” era o equivalente a “colocar em prática” o que se ouviu. Essa seria uma comprovação de que de fato a escutou.

A boa terra produz uma colheita variada (30, 60 e 100 por um) e abundante. Ao produzir, cada uma dessas sementes é agora multiplicadora dessa mudança e dessa vida em outros terrenos. Que outros? Ora, há muitos outros como aqueles que ao início dessa história estavam ansiosos, de pé, à beira da praia.

Aqueles que buscavam são então chamados a ser a resposta a muitos outros que também, em suas necessidades, seguem buscando.

(Continua...)


Foto: © Tim Kahane 2006- 0138 Waiting in a field
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16 junho 2008

Em todos os terrenos



(Série Histórias Agronômicas - II)

No capítulo mais agronômico* de todas as Escrituras, a primeira das parábolas chega para contar-nos acerca de um semeador com uma tarefa. Essa consiste basicamente em fazer um recorrido por vários tipos de terrenos, semeando em cada um deles.

Entre tantas e tão importantes lições, hoje fico com uma que me parece pouco notada. A de que o semeador passa por vários terrenos.

A pergunta, bem simples, seria essa. Por que ele passa por diversos terrenos, inclusive aqueles com “poucas chances”?

Estaria o semeador em busca daquele terreno ideal, em uma espécie de caça ao tesouro perdido, para que quando o encontre, abandone os demais?

Será que lhe faltou uma pesquisa prévia de mercado, para saber dos interesses de seus potenciais consumidores, e assim tentar prever o impacto de seu produto no mercado?

Teria lhe faltado orientação profissional e seria ele somente um inexperiente amador que precisa preparar-se melhor para essa tarefa?

Ou não seria simplesmente uma indicação de que não se deve fazer uma “pré-seleção do terreno”? Fico pensando se a ação do semeador poderia nos revelar a lição de que não há que buscar definir de antemão, como se isso fosse possível, donde seremos exitosos e donde não. Por essa lógica, alguém pensaria que poderia escolher semear e trabalhar somente onde imagina, ou aposta, que tudo lhe sairá bem.

O problema é que não é possível, nem desejável, alcançar essa certeza.

Não é possível porque não sabemos tudo, não temos o controle de todas as variáveis e circunstâncias. Também porque há outros elementos, assim o veremos nessas parábolas, que envolvem esse ato de semear com nossas frágeis mãos.

Também não é desejável porque não podemos excluir ou decidir que esse sim e que esse não. Ao contrário, Jesus nos ofereceu um modelo de compaixão por todas as pessoas, em todas suas necessidades. A paz e a vida são presentes oferecidos a todos, sem distinção.

(Continua...)

* Marcos 4

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Countryside: Crops
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09 junho 2008

Foi assim que me apaixonei por aquele texto



(Série Histórias Agronômicas - I)

Apaixonei-me por um capítulo da Bíblia em um congresso científico! Foi assim. Tive que chegar antes para garantir meu assento no auditório. O Dr. Warwick Estevam Kerr estava por proferir uma palestra no Congresso Brasileiro de Genética. Era 1990, em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. De todos lados chegavam estudantes e professores para ouvir aquele que trazia consigo uma invejável fama de brilhante cientista.

Para falar da biodiversidade, o tema de sua palestra, o Dr. Kerr nos deliciou com uma exposição da parábola do semeador! Aí estava um respeitado geneticista deixando-nos boquiabertos com sua desenvoltura ao falar de ciência usando a sabedoria dos evangelhos.


Creio que o capítulo 4 do evangelho de Marcos, onde encontramos essa parábola, é o capítulo agronômico por excelência. Antes que você pense que estou sendo tendencioso por defender a classe agronômica, observe que, nessa seção das Escrituras, Jesus nos conta três parábolas sobre as sementes como metáforas do Reino.


O Dr. Kerr é um homem brilhante, mas também muito simples. Lembro-me com carinho de sua deferência ao vir fazer comentários sobre o trabalho científico que eu, um jovem e bem inexperiente estudante, apresentava. Apesar dele conhecer meu pai já havia algumas décadas, foi fácil reconhecer que sua atenção não se deveu a essa conexão, digamos, familiar.


Bastava ver como ele pacientemente visitava cada stand, e a maneira como ele falava com cada estudante como se fosse um companheiro de longa data na labuta científica. O saber não lhe havia subido à cabeça. Perguntava-me se poderia haver outra lição que ele poderia nos dar. E ele o fazia.

Era alguém que propunha questões instigantes, provocativas, ajudando-nos a ver aspectos da investigação que antes não havíamos nos dado conta. Ou seja, sua ajuda vinha mais através de suas perguntas e provocações do que através de receitas que pudesse nos dar.


Foi assim que esse professor universitário, um cientista bem respeitado em todo o mundo, levou-me a uma paixão por algumas parábolas das Escrituras.


Falo do professor, e de como me inspirou, talvez em uma singela homenagem, antes de compartilhar com vocês algumas breves reflexões sobre as sementes e o Reino, nessa série à qual nomeio “histórias agronômicas”. Até a próxima semana!


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Ready for Lecture? (Version 1)
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27 maio 2008

Um estudante coerente

Hoje me deparei com um estudante coerente. Aconteceu em uma dessas reuniões da Comunidade Bíblica Universitária do Uruguai. Um grupo relativamente pequeno, seis ao todo, mas em um fascinante encontro.

Todos ansiosos por compartilhar sua fé com seus colegas não-cristãos, em um esforço comunitário, com método e dinâmica que buscam ser adequados a esse contexto.

Eu disse todos? Bem, um deles talvez não tanto. Foi assim. Ele me pediu uma conversa reservada ao fim de nosso encontro. Seu objetivo, explicar-me as razões pelas quais não participaria do grupo.

Não lhes revelarei os detalhes. Não desejo lhes passar uma imagem negativa de meu novo amigo. Posso sim lhes dizer que ele foi coerente com a tradição de fé onde foi criado. Sugeriu-me que nosso esforço evangelístico seria algo incompleto. A razão era que nos faltariam elementos importantes “da verdade”.

Intrigado, pedi-lhe um exemplo. Ao ouvir sua resposta, tentei argumentar que eram coisas secundárias, doutrinas de sua igreja, e que havia que focar no essencial quando se tratava de um esforço missionário interdenominacional. “Aqui estamos para que aqueles que não conheçam a Jesus possam dele se acercar”, disse. “Depois, pela graça de Deus, cada um vai naturalmente se conectando em diferentes comunidades e congregações cristãs, onde poderão crescer e amadurecer sua fé”.

Mas eu via que essa idéia de cada um se conectar a uma igreja diferente era algo que o incomodava. Explicitamente sugeriu que esse seria um "problema".

Resolvi então confrontar-lo com a lógica de Francis Schaeffer. Ou seja, levá-lo a experimentar ou a assumir as conseqüências de sua maneira de pensar. Fazer com que ele seguisse seu próprio raciocínio e visse aonde isso o levava. Desafiei-lhe, “assim, se você for coerente com seu pensamento, você deveria me evangelizar, porque essa é a necessidade absoluta decorrente de sua maneira de pensar”.

Momentos de tensão e silêncio, olhar fixo um nos olhos do outro. Passados alguns instantes, ele se volta, abre sua mochila, agarra um material bíblico que aí levava, e faz exatamente isso, começa a me “evangelizar”. Entre atônito e surpreso, eu o ouvi.

Quando terminou a conversa, vim embora trazendo o material comigo. Prometi voltar a vê-lo em uma semana e dizer-lhe o que penso daquilo. Não sei onde essa conversa irá nos levar, e confesso que estou agora mais preocupado com seus colegas não-cristãos.

Mas devo reconhecer que fazia tempos que não encontrava alguém tão decidido e coerente. Não concordar com ele agora era um detalhe. Saí pensando em como posso ser mais coerente com o que penso e acredito. E também em como posso animar os outros estudantes a experimentar essa coerência e valentia em sua fé e missão.

Preciso revisar meus velhos livros do Schaeffer e ver se ele me diz alguma coisa sobre os próximos passos em situações como essas. Até a próxima!

Foto: © Tali KF - Copyright © 2008 TrekEarth

18 maio 2008

Mandou-o ao inferno 2

Era 1980, em Pattaya, Tailândia. O uruguaio Emilio Castro1 se intrigava com o que se passava durante a visita do dignitário real à consulta realizada pelo Comitê de Lausanne para a evangelização mundial, com a participação de cerca de 900 líderes de todo o mundo.

Vieram os procedimentos do protocolo. Agradeceram ao enviado do rei por sua hospitalidade e pelo gesto de visitar o evento. Emilio descreveu depois sua inquietação nos seguintes termos:

“... a esse dignitário real se presenteou uma Bíblia, mas em nenhum momento lhe foi dito: ‘E lamentamos muito que não vamos nos ver no outro mundo, porque vossa senhoria vai ao inferno’. Eu comentava com meus amigos: ‘Percebem que estamos convencidos de que há salvação em Jesus Cristo e que ninguém vem ao Pai senão por mim, mas ao mesmo tempo não temos a coragem de dizer àqueles que estão ao meu lado: “Está perdido e você vai ao inferno”.2


Bom, minha filha de 9 anos teve outro dia essa, digamos, “coragem missionária”. Aconteceu assim. O simpático vizinho, de sua mesma idade, nos visitava. Em algum momento, creio que Ana Júlia buscava explicar-lhe os motivos de nossa mudança ao Uruguai, e isso envolvia falar do trabalho de seu pai. Depois de mencionar a Bíblia e Deus umas duas ou três vezes, o garoto, meio que desafiante, lhe disse “pois eu não acredito em Deus”.

Foi aí que minha querida filha lhe retrucou algo assim, “quem não acredita em Deus vai pro inferno”. Singela e direta, um amor de criança. Resolvi intervir quando ouvi o garoto gaguejar ao tentar defender-se. “Eu, quer dizer, não vou, minha mãe disse, não é porque eu não acredito que eu vou para o inferno...”. Logo percebi que a sua crença no inferno andava bem mais desenvolvida do que as outras.

Convidamos o garoto para o almoço. Nada como o bom testemunho da hospitalidade à mesa para que tentássemos avançar. Quase tudo vai por água abaixo quando Carolina, nossa menor de 5 anos, irrompe logo após a oração de gratidão, “Você estava de olho aberto e Jesus não escuta oração de olho aberto”. Os reflexos das chamas do inferno voltaram a brilhar nos olhos do garoto. Enquanto eu me perguntava quem havia ensinado isso a Caro, tratei de tentar voltar à teologia da mesa e da hospitalidade com nosso convidado.

Refletindo sobre o que se passou entendo que não posso escapar do que o próprio Jesus falou acerca do juízo e da condenação. É verificável que, mesmo sem a presença da fé, freqüentemente encontramos que mesmo um básico senso comum demanda um conceito de justiça. Ou seja, sem a noção de reparação ou retribuição, ficamos sem lastro ou sem referência, inclusive para que possamos viver bem e harmoniosamente em uma sociedade.

O problema se dá quando examinamos nossas próprias noções sobre o que é necessário para que haja reparação ou justiça. Vemos que, nos evangelhos, nossas concepções de juízo e de castigo são confrontadas por Jesus. Parece que elas vêm de nossa natureza humana caída, quando muitas vezes ambicionamos ser mais justos do que o Rei.


Falando em reis, não sei o que se passaria se houvessem dito o seguinte ao enviado do rei da Tailândia,
“olha, diga ao seu chefe que se ele não ler esse livro ou se não acreditar no que está aí, estará no sal, ou pior ainda, estará no fogo”. Suspeito que essa não seria a melhor "estratégia" evangelística, e tampouco seria ela embasada no modelo de Jesus.

Talvez Jesus o convidasse para a mesa, e de olhos bem abertos o rei poderia ver e ouvir de Jesus acerca do caminho de vida que há nEle e através dEle. Daí o monarca teria dois caminhos simples a tomar, segui-lo ou rejeitá-lo. Opções que teriam seus desdobramentos. Mas não creio que atirar em sua cara essas conseqüências iria ajudá-lo a abraçar e seguir a Jesus. A voz e o olhar de Jesus à mesa, esses sim seriam um enorme e atrativo convite.

1 Isso se passou quatro anos antes de Emilio Castro vir a assumir a secretaria geral do Concílio Mundial de Igrejas. Em tempo, quem ler o livro de onde extraio a história verá que, na verdade, Emilio criticava essa possível postura de enviar os outros para o inferno.


2 Em entrevistas publicadas em “Paixão e compromisso com o Reino de Deus”, Manuel Quintero Pérez e Carlos Sintado, Kairós Ediciones, 2007.


Foto: © David Sidwell - Copyright © 2008 TrekEarth

11 maio 2008

Mandou-o ao inferno

Desde a época em que um estudante universitário em conflito me relatou em uma longa carta de 16 páginas (sim, ainda não existia e-mail...) seus horrores com a maneira em que ele havia sido “evangelizado”, tenho dificuldades em “usar” o conceito ou a realidade do inferno em conversas com não-cristãos.

Interessante notar que quando Jesus falou do conceito de punição e justiça, o fez com os religiosos, mas não o usava em seus encontros com os aflitos necessitados da graça.

Lembro-me de outro amigo, um bom companheiro de moradia enquanto éramos estudantes na universidade. Ele me revelou sua luta interna mais ou menos assim: “Não posso imaginar que abraçarei uma fé que me leve a crer que aquelas pessoas queridas de minha família, algumas das quais já morreram, e que não abraçaram essa mesma fé, irão para algum tipo de sofrimento eterno.”

Era um dilema real, honesto e humano. Não me recordo bem das palavras com que lhe respondi, mas foram algo na direção de que esse Deus em quem eu cria era muito mais justo do que qualquer noção de justiça que pudéssemos ter. E que Ele saberia resolver esse “problema” melhor do que nós mesmos. Nossa parte era confiar e abraçar o que nos parecia correto, verdadeiro, o que nos levava à vida.

Esse dilema também atingiu a Charles Darwin. No final de sua vida, escreveu em sua autobiografia que não podia “entender como alguém devesse desejar que o Cristianismo fosse verdade”. Caso fosse, a linguagem do Novo Testamento “parecia mostrar que os homens que não têm fé, e isso incluiria meu pai, irmãos, e quase todos meus melhores amigos, seriam eternamente punidos. E essa era uma doutrina abominável”.1

Talvez fosse interessante perguntar por que supostamente só os amigos ou parentes mereceriam tal compaixão. Mas é fato que primeiro sofremos com eles e por eles. E isso pode se tornar, no caso de não se tratar de uma desculpa ou escape vil, em um elemento legítimo de crise que embaça ou bloqueia o caminho para que alguém experimente a misericórdia e a graça.

Parte desse problema, creio eu, se dá porque a muitos cristãos lhes parece importante determinar o destino eterno de alguém, em especial dos incrédulos.

Não desejo entrar aqui em águas ou chamas perigosas da doutrina do inferno. Podem me chamar de covarde, que a crítica me cairá bem. Mas queria sim levantar alguma reflexão sobre o uso que fazemos desse ensinamento ou acerca de nossa ânsia por ter “controle” sobre o assunto, dizendo de antemão e com segurança a quem caberá o quê.

Graça e misericórdia não existem sem a noção de justiça, isso é certo. Mas reluto em ser como Jonas quanto aos ninivitas. Porque se acho que posso ser mais justo do que Deus, toda minha injustiça e egoísmo ficarão dolorosamente expostos.

O universitário do início do texto hoje segue a Jesus com alegria. Não foi o obscurantismo dos filmes de terror “evangélicos” que o “evangelizaram”. Não foi quando lhe enviaram ao inferno que ele conheceu a Jesus.

Foi assim. Ele ouviu uma batida na porta e uma voz que do outro lado lhe chamava. Relutante abriu, e logo com confiança andou, levado por aquele que lhe tomou pela mão.

1 Darwin: a vida de um evolucionista atormentado, Geração Editorial, p. 643

Foto: © Adilson Faltz - 2008 TrekEarth

03 maio 2008

Você enviaria seu filho a uma faculdade cristã?



Como você responderia à pergunta do título? Veja bem que você pode fazer amigos ou inimigos dependendo de como a responde.

Por um lado, poderia cair no equívoco de desconsiderar o valor que se deu à educação em séculos de missão cristã no mundo. Também poderia, caso fosse alguém conhecido e dessem ouvidos à sua opinião, afetar os interesses econômicos e mesmo a viabilidade de várias instituições.

Vendo por outro lado, poderia ser um saudável exercício de questionar as motivações por que um indivíduo (ou sua família) prefere ir estudar em um centro de estudos conhecido por sua confessionalidade ou por suas tradições cristãs. O que buscariam ao refugiar-se em uma escola assim?

O tema é complexo, suscita paixões e polêmicas. Talvez por isso é que Stacey Woods, há mais de 60 anos, precisamente em 1944, tenha escrito um artigo usando um pseudônimo, na revista HIS, da IVCF-USA, com o sugestivo título “Deveria ir a uma Faculdade Cristã nesse outono?”.1

Stacey foi esse entusiasta australiano que assumiu como o primeiro secretário geral dos movimentos estudantis cristãos debaixo do guarda-chuva da IFES, e que à época desse artigo estava ainda “somente” liderando os movimentos estudantis da IVCF-USA e IVCF-Canadá, ao mesmo tempo!

No referido artigo, após animar jovens estudantes cristãos a escolherem uma faculdade “não-cristã”, ele lançou o alerta: “Cuidado com o perigo de viver em outro mundo, falhando em entender o mundo dos homens e mulheres não convertidos, com os quais ao fim você terá que conviver, e diante dos quais você terá que testemunhar.”

Ele então concluiu com as retumbantes palavras: “Porque o campus secular é o seu campo de missão e sua gloriosa oportunidade. Deus o colocou aí para ser Sua testemunha – Seu missionário – Seu embaixador.”

Em meu caso, se me permitem a confissão, fico pensando se não deveria eu mesmo escrever esse breve artigo usando também um pseudônimo. É porque eu estudei em uma faculdade cristã e desfrutei da experiência. Mas também poderia defender-me dizendo que já estudei em uma universidade “secular” e que essa foi a mais significativa experiência de aprendizado (inclusive quanto à maturidade cristã) de minha vida.

Ou então a incoerência maior viria por minhas filhas. Ambas estudam em uma escola confessional cristã e que ainda por cima é vinculada à comunidade cristã onde nos congregamos.
Ora, ao fim, poderia desavergonhadamente dizer que me proponho aqui a levantar perguntas, inclusive para mim mesmo, e não a tentar ser coerente. E que talvez revisando nossas motivações e “estratégias” possamos todos, cada um em sua praia, vocação e caminho, sermos as tais testemunhas e missionários a que o Stacey se referiu.

Ou ainda ser um bom “embaixador do evangelho”, como Woods concluiu em seu artigo lá dos anos 40. Só uma última e rápida dica: sugiro não usar esse singelo nome para seu grupo estudantil na tal universidade não-cristã. Abraço e até a próxima!

1 Citado em "C. Stacey Woods and the Evangelical Rediscovery of the University", A. Donald MacLeod, IVP Academic.

Foto: © Rice
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26 abril 2008

O outro lado da cerca



Cercas são necessárias. Tanto para crianças como, perdão pela comparação, para animais. Em ambos falta juízo. Pensando nas crianças e no seu bem, cercas e protetores de tomadas são úteis para que não se machuquem. É proteção em sua essência.

Também é verdade que as protegemos se removemos as cercas na medida em que elas crescem. Quando a meta é responsabilidade e maturidade, continuar “protegendo” para sempre será um desserviço ao caminho do crescimento.

Do mesmo modo funciona a jornada para a maturidade na fé cristã. As cercas podem e devem funcionar em algum momento. Caso reconheçamos que acreditar em algo é primário e duvidar é secundário, como ao menos deveria ser, então é bom que se construa alguma base sólida inicial, antes da época dos enfrentamentos. Mas, depois, se essa fé não for desafiada pelo mundo, nas confrontações “fáceis” e “difíceis” da vida, ela não chegará a ser tal desejado alicerce.

Uma confrontação “fácil” seria muitas vezes aquela em que o oponente se coloca tão claramente contrário à visão de mundo de sua fé, que não custa muito identificar as áreas de discordância e para onde cada um está apontando.

Já os conflitos “difíceis” seriam aqueles em que o lado de lá da cerca apresenta argumentos que nos parecem apropriados, sensatos, coerentes. Quase dá vontade de estar do “outro lado”, defendendo exatamente os mesmos pontos, ou pelo menos quase isso. A questão é que, ao examinar mais de perto, escrutinando os fundamentos de suas posições e levando ao limite as conseqüências de seus argumentos, pode-se muitas vezes perceber que na verdade há um profundo hiato, uma batalha de cosmovisões.

Posso não saber muito como argumentar de volta (quase nunca o sei) mas vem o sentimento e a percepção de que há algo fundamentalmente diferente entre as concepções de mundo desse "outro" e as minhas próprias.

Claro que posso sempre querer usar o tentador expediente do “homem de palha”, ao tentar simplificar e reduzir a opinião alheia a algo tão fraco ou estúpido que facilmente posso derrubar. Mas isso não seria honesto nem uma ajuda apropriada à causa de minha fé.

Chego então ao ponto principal. O de que toda verdade é ou não verdade de fato se passa pelo crivo do debate no espaço público. Se a verdade do evangelho que eu acredito não vem para essa esfera do questionamento, da dúvida, da suspeita, da argumentação contrária, então ela não foi nem nunca será verdade. Pode até ser uma verdade do ponto de vista conceitual, abstrato, mas nunca o foi para mim, se é que não a “arrisco” na arena pública. Ou não seria melhor dizer “se não me arrisco”?

Ainda não tenho bem claro para mim se nesse espaço público devemos nos dedicar mais à pregação ou à persuasão. Sou um fã das duas, e não me parece adequado abrir mão de uma ou de outra. Anúncio ou diálogo? Exposição bem elaborada ou ouvido mais atento? Proclamar ou buscar persuadir? Talvez se substituirmos o “ou” das três perguntas anteriores por um “e
podemos ir tateando um possível caminho.

Enquanto isso, diz-me aí de que lado da cerca você está. O pasto verdinho do lado de cá é mesmo tentador para ruminar, em tranqüila e indiferente pasmaceira. O lado de lá é um debate “arriscado”, de perguntas e confrontações. Posso apanhar naquele lado, e até ser mal visto por haver “atravessado a cerca”. Então lhe digo, se estiver preparado, pule a cerca! Mas veja bem para que salte essa e não aquela outra. Não aceitarei a desculpa de que fui eu quem lhe induziu ao mau caminho. Pelo menos seu marido ou esposa não deveria aceitá-la. Até a próxima!


Foto: © Pablo Nogueira - El viaje hacia el mar
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