20 setembro 2008

O Nordeste é ali



A noite avançava enquanto a fresca brisa do mar carioca abrandava o cansaço da já longa reunião. Jovens lideranças evangélicas intercambiavam idéias e reflexões acerca de um futuro conclave da juventude evangélica nacional.

Chegou-se o momento de discutir o local do tal evento. Meu bom amigo carioca, anfitrião dessa tertúlia, propôs com firmeza “o encontro tem que ser no Nordeste!”. “O Nordeste é longe!”, rebateu outro nobre companheiro. Sem titubear, meu amigo contra-atacou “longe pra quem?”.

O olhar espantado do interlocutor acerca do supostamente distante e inacessível Nordeste me fazia suspeitar que ele ainda não tivesse se dado conta do quanto seu comentário havia sido geograficamente autocentrado.

Ao fim, e resumindo, esse encontro não se realizou no Nordeste, o que foi uma pena. Prevaleceu uma péssima lógica sulista paulista que infelizmente valoriza apenas o que acontece em latitudes capricornianas.

Minha confissão de hoje é a seguinte. Sou paulista, como meu colega da proposta que prevaleceu. Nunca me achei lá muito preconceituoso, ainda que meu grande amigo carioca vivesse me alertando sobre como os paulistas pensam que São Paulo é o centro do mundo. E nem adiantava contestar. Se um bom bêbado nunca admite sua embriaguez, um bom paulista nunca deve admitir seu etnocentrismo.

Tinha sempre o benefício ou a possibilidade de mudar o endereço da crítica e transferir a acusação aos paulistanos. Eu, do interior, pensava o mesmo dos esnobes da capital, algo parecido à opinião dos argentinos em geral acerca dos portenhos (aí a piada óbvia e imperdível é que nesse caso eles estão certíssimos; mas como o objetivo aqui não é falar mal dos vizinhos tangueiros, volto à auto-crítica).

Foi só quando vivi na Inglaterra que tive a oportunidade de ver essas coisas sob uma perspectiva diferente. Talvez tenha se dado por sofrer na própria pele o preconceito. Os olhares, os comentários, o dito e o não dito. Sentia-me mal, e lembrava-me das queixas de amigos nordestinos. Eles tinham razão! Dói na alma ser discriminado e diminuído.

Posso ter meus defeitos, quem não os têm, mas ouvi-los da boca do estranho que se vê, ou se imagina superior a mim, provoca aqui dentro imediata reação.

Lembro-me dos comentários daquele nosso professor inglês acerca da corrupção na América Latina. Ele tinha razão, não havia como negar. Mas como não é bom ouvir críticas a alguém de casa por um desconhecido arrogante, a resposta veio rápida. Deliciei-me ao vê-lo tentar responder à forte reação de minha querida esposa, mencionando em classe os inconvenientes morais acerca do que os suíços fizeram com o ouro dos judeus roubado pelos nazistas, e outros pecadilhos europeus.

Se for para falar dos defeitos alheios, que nos lambuzemos antes no reconhecimento de nossos próprios. Creio que assim se pode chegar a uma perspectiva mais honesta e autocrítica da realidade.

Meu bom amigo carioca desfruta nesse momento de uma especial experiência de vida em terras catalãs. Já eu vivo e curto o auto-exílio em terras mais ao Sul. Seriam protestos silenciosos acerca de um Brasil que cada vez mais esparrama suas ambições de poder no mundo? Não, não estamos para tanto. Nem nós, tampouco o Brasil. Mas se o país estivesse mesmo com essa bola toda, ficaria louco de vontade de propor o Nordeste para a próxima sede da ONU.

Foto: © Caatinga
Upload feito originalmente por Marcio Fernando

04 setembro 2008

Amor líquido como sabão



“O fracasso de uma relação é com freqüência um fracasso de comunicação”
Zygmunt Bauman


Confesso que fiquei tentado em colocar o seguinte título nesse texto: “Uma garotinha de 5 anos resenha livro de Zygmunt Bauman”. Depois pensei melhor, imaginei que poderia suscitar incontáveis visitas ao blog pela curiosidade que tal frase provocaria nos mecanismos de busca na Internet, e daí optei por esse que está aí. Conto-lhes como ele surgiu.

Carolina, a tal garotinha do título abortado, que sucede ser minha filha caçula, viu um exemplar de “Amor líquido” descansando em minha mesinha de cabeceira. Curiosa, e dando seus primeiros passinhos com as letras, leu-me em voz alta a capa.

Ela saiu dali intrigada. Creio que o subtítulo não a ajudou muito, “Acerca de la fragilidad de los vínculos humanos”. Sim, minha versão é em espanhol e a pobre criatura ainda tem que aprender a ler em dois idiomas. O mundo é assim mesmo, cruel e injusto.

Passamos os dois ao banheiro, com o nobre propósito de lavar as mãos antes do almoço. Seu olhinho se iluminou, apontou para o pote de sabonete líquido e aí me disse triunfante “Amor líquido como sabão!”. Que pai, por mais insensível que fosse não concordaria com a brilhante e breve resenha que sua jovem filha acabara de fazer do livro de Bauman?

Estou apenas no começo do que me parece ser um excelente ensaio. O primeiro capítulo sobre como a gente se enamora e se desenamora (como se diz isso em português?) em nosso mundo é fabuloso. Creio que tem muito a ver com aquela estranha idéia, comentada aqui anteriormente, de colocar prazo de validade nos casamentos.

Foi outro dia, quando cruzei ao outro lado do rio e visitei minha livraria preferida, que resolvi acabar com essa pendência com o catedrático em sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia. Adquiri então esses quatro títulos: Amor líquido, Miedo líquido (la sociedad contemporânea y sus temores), Modernidad líquida, Vidas desperdiciadas (la modernidad y sus parias).

Tudo bem, reconheço que há muito “líquido” nesse pacote. Não tem problema, estou em dieta mesmo. Não por razões estéticas, claro. Nem porque minha esposa tenha insinuado que eu precisasse. Ou será que ela o fez e eu não entendi o que ela tentava me dizer? Espero que o Bauman resolva meu dilema no próximo capítulo.

Foto: ©
The soap dispenser formerly known as Gonzo
Upload feito originalmente por Andreas Reinhold