11 fevereiro 2010

O chicote do Papa e o jejum do crente



Provocou polêmica o lançamento recente de um livro que revelou a auto-flagelação do falecido Papa João Paulo II com um cinto e as noites em que dormia prostrado no chão.

Da penitência, como evangélico e ao menos em teoria, tenho pouca familiaridade. Ainda que seja um fato embaraçosamente comum em comunidades evangélicas os nossos jogos de auto-engano e as nossas vãs tentativas ao buscar compensações com o Senhor.

Essas artimanhas e negócios costumam aparecer quando tentamos oferecer nossos singelos pagamentos pelos pecados ocultos de nossa alma. Ou quando buscamos algum favor especial dos céus. Um jogo sem fim, e normalmente sem ganhadores. A não ser quando a graça e a misericórdia de nosso Senhor, que são maiores do que a vida, assim mesmo se manifestam, sempre apesar de nós mesmos.

Ainda assim, há um mistério em torno do proveito que posso ter ao abster-me de algo. É inegável que a auto-negação e a renúncia aparecem nas Escrituras muitas vezes como virtudes positivas daquele que crê. Talvez porque, entre outras coisas, provoquem o início de uma fortaleza íntima, de um controle, ainda que débil, sobre tudo aquilo que possa nos escravizar.

A começar por nossa própria natureza. Vi nesses dias o ator Hugh Jackman afirmar, em um documentário sobre o personagem Wolverine, que “não há nada melhor do que poder fazer o que quiser, na hora em que quiser, sem quaisquer regras de conduta”. Não entrarei no mérito do que essa postura pode produzir na atribulada vida de um personagem de X-Men ou na de qualquer um de nós, ordinários e não mutantes pecadores.

Vale, então, literalmente, o sacrifício? O sofrimento produz perseverança, disse Paulo aos seus irmãos da capital do Império1. Ele também esmurrava o seu corpo2, numa alusão, literal ou não, a seu exercício de auto-domínio. Mas é possível que Paulo não buscasse o sofrimento (ele já vinha sem que fosse preciso buscá-lo, por sua fidelidade a Cristo3), sendo que até mesmo pedia alívio quando esse o sufocava4. Não sei, talvez a chave esteja em minha atitude íntima, e se devo ou não fazer publicidade da disciplina que cultive.

Voltando à revelação acerca dos hábitos secretos do Papa, o que sim me pareceu interessante é que aparentemente ele guardava esse segredo para si mesmo. Não o promovia e não se promovia com isso. Ele provavelmente sabia com que fantasmas internos lutava, ainda que outros pudessem questionar seus métodos ou motivações. Mas não impôs seu exemplo, nem mesmo o revelou.

Outro dia vi uma igreja promovendo o jejum entre seus membros através de uma rede social. Havia uma não tão sutil imposição para que todos seus membros o praticassem e uma certa tentativa de fiscalizar o seu cumprimento. Lamento comentar esse exemplo de uma maneira negativa. Sou favorável ao saudável resgate dessa disciplina, entre outras esquecidas e estigmatizadas pelo nosso mundo.

No caso do jejum, por exemplo, não nos esquecendo do mui saudável princípio da discrição e da disciplina espiritual que é cultivada no segredo da alcova íntima. Quer um benefício público e visível para ela? Enviem o que economizarem em sua prática para as vítimas no Haiti ou para aquele vizinho ou familiar em necessidade. Uma doação anônima, claro.

Deixem o papa, ou sua memória, e não barganhem com Deus, ou ao menos não cobrem de seu próximo que entre em seu próprio jogo de comércio divino e auto-promoção.

1 Romanos 5:3b
2 1 Corintios 9:27
3 1 Coríntios 11:23-27
4 2 Coríntios 12:8


Foto: ©
Prayer
Upload feito originalmente por
Kaj Bjurman