27 maio 2008

Um estudante coerente

Hoje me deparei com um estudante coerente. Aconteceu em uma dessas reuniões da Comunidade Bíblica Universitária do Uruguai. Um grupo relativamente pequeno, seis ao todo, mas em um fascinante encontro.

Todos ansiosos por compartilhar sua fé com seus colegas não-cristãos, em um esforço comunitário, com método e dinâmica que buscam ser adequados a esse contexto.

Eu disse todos? Bem, um deles talvez não tanto. Foi assim. Ele me pediu uma conversa reservada ao fim de nosso encontro. Seu objetivo, explicar-me as razões pelas quais não participaria do grupo.

Não lhes revelarei os detalhes. Não desejo lhes passar uma imagem negativa de meu novo amigo. Posso sim lhes dizer que ele foi coerente com a tradição de fé onde foi criado. Sugeriu-me que nosso esforço evangelístico seria algo incompleto. A razão era que nos faltariam elementos importantes “da verdade”.

Intrigado, pedi-lhe um exemplo. Ao ouvir sua resposta, tentei argumentar que eram coisas secundárias, doutrinas de sua igreja, e que havia que focar no essencial quando se tratava de um esforço missionário interdenominacional. “Aqui estamos para que aqueles que não conheçam a Jesus possam dele se acercar”, disse. “Depois, pela graça de Deus, cada um vai naturalmente se conectando em diferentes comunidades e congregações cristãs, onde poderão crescer e amadurecer sua fé”.

Mas eu via que essa idéia de cada um se conectar a uma igreja diferente era algo que o incomodava. Explicitamente sugeriu que esse seria um "problema".

Resolvi então confrontar-lo com a lógica de Francis Schaeffer. Ou seja, levá-lo a experimentar ou a assumir as conseqüências de sua maneira de pensar. Fazer com que ele seguisse seu próprio raciocínio e visse aonde isso o levava. Desafiei-lhe, “assim, se você for coerente com seu pensamento, você deveria me evangelizar, porque essa é a necessidade absoluta decorrente de sua maneira de pensar”.

Momentos de tensão e silêncio, olhar fixo um nos olhos do outro. Passados alguns instantes, ele se volta, abre sua mochila, agarra um material bíblico que aí levava, e faz exatamente isso, começa a me “evangelizar”. Entre atônito e surpreso, eu o ouvi.

Quando terminou a conversa, vim embora trazendo o material comigo. Prometi voltar a vê-lo em uma semana e dizer-lhe o que penso daquilo. Não sei onde essa conversa irá nos levar, e confesso que estou agora mais preocupado com seus colegas não-cristãos.

Mas devo reconhecer que fazia tempos que não encontrava alguém tão decidido e coerente. Não concordar com ele agora era um detalhe. Saí pensando em como posso ser mais coerente com o que penso e acredito. E também em como posso animar os outros estudantes a experimentar essa coerência e valentia em sua fé e missão.

Preciso revisar meus velhos livros do Schaeffer e ver se ele me diz alguma coisa sobre os próximos passos em situações como essas. Até a próxima!

Foto: © Tali KF - Copyright © 2008 TrekEarth

18 maio 2008

Mandou-o ao inferno 2

Era 1980, em Pattaya, Tailândia. O uruguaio Emilio Castro1 se intrigava com o que se passava durante a visita do dignitário real à consulta realizada pelo Comitê de Lausanne para a evangelização mundial, com a participação de cerca de 900 líderes de todo o mundo.

Vieram os procedimentos do protocolo. Agradeceram ao enviado do rei por sua hospitalidade e pelo gesto de visitar o evento. Emilio descreveu depois sua inquietação nos seguintes termos:

“... a esse dignitário real se presenteou uma Bíblia, mas em nenhum momento lhe foi dito: ‘E lamentamos muito que não vamos nos ver no outro mundo, porque vossa senhoria vai ao inferno’. Eu comentava com meus amigos: ‘Percebem que estamos convencidos de que há salvação em Jesus Cristo e que ninguém vem ao Pai senão por mim, mas ao mesmo tempo não temos a coragem de dizer àqueles que estão ao meu lado: “Está perdido e você vai ao inferno”.2


Bom, minha filha de 9 anos teve outro dia essa, digamos, “coragem missionária”. Aconteceu assim. O simpático vizinho, de sua mesma idade, nos visitava. Em algum momento, creio que Ana Júlia buscava explicar-lhe os motivos de nossa mudança ao Uruguai, e isso envolvia falar do trabalho de seu pai. Depois de mencionar a Bíblia e Deus umas duas ou três vezes, o garoto, meio que desafiante, lhe disse “pois eu não acredito em Deus”.

Foi aí que minha querida filha lhe retrucou algo assim, “quem não acredita em Deus vai pro inferno”. Singela e direta, um amor de criança. Resolvi intervir quando ouvi o garoto gaguejar ao tentar defender-se. “Eu, quer dizer, não vou, minha mãe disse, não é porque eu não acredito que eu vou para o inferno...”. Logo percebi que a sua crença no inferno andava bem mais desenvolvida do que as outras.

Convidamos o garoto para o almoço. Nada como o bom testemunho da hospitalidade à mesa para que tentássemos avançar. Quase tudo vai por água abaixo quando Carolina, nossa menor de 5 anos, irrompe logo após a oração de gratidão, “Você estava de olho aberto e Jesus não escuta oração de olho aberto”. Os reflexos das chamas do inferno voltaram a brilhar nos olhos do garoto. Enquanto eu me perguntava quem havia ensinado isso a Caro, tratei de tentar voltar à teologia da mesa e da hospitalidade com nosso convidado.

Refletindo sobre o que se passou entendo que não posso escapar do que o próprio Jesus falou acerca do juízo e da condenação. É verificável que, mesmo sem a presença da fé, freqüentemente encontramos que mesmo um básico senso comum demanda um conceito de justiça. Ou seja, sem a noção de reparação ou retribuição, ficamos sem lastro ou sem referência, inclusive para que possamos viver bem e harmoniosamente em uma sociedade.

O problema se dá quando examinamos nossas próprias noções sobre o que é necessário para que haja reparação ou justiça. Vemos que, nos evangelhos, nossas concepções de juízo e de castigo são confrontadas por Jesus. Parece que elas vêm de nossa natureza humana caída, quando muitas vezes ambicionamos ser mais justos do que o Rei.


Falando em reis, não sei o que se passaria se houvessem dito o seguinte ao enviado do rei da Tailândia,
“olha, diga ao seu chefe que se ele não ler esse livro ou se não acreditar no que está aí, estará no sal, ou pior ainda, estará no fogo”. Suspeito que essa não seria a melhor "estratégia" evangelística, e tampouco seria ela embasada no modelo de Jesus.

Talvez Jesus o convidasse para a mesa, e de olhos bem abertos o rei poderia ver e ouvir de Jesus acerca do caminho de vida que há nEle e através dEle. Daí o monarca teria dois caminhos simples a tomar, segui-lo ou rejeitá-lo. Opções que teriam seus desdobramentos. Mas não creio que atirar em sua cara essas conseqüências iria ajudá-lo a abraçar e seguir a Jesus. A voz e o olhar de Jesus à mesa, esses sim seriam um enorme e atrativo convite.

1 Isso se passou quatro anos antes de Emilio Castro vir a assumir a secretaria geral do Concílio Mundial de Igrejas. Em tempo, quem ler o livro de onde extraio a história verá que, na verdade, Emilio criticava essa possível postura de enviar os outros para o inferno.


2 Em entrevistas publicadas em “Paixão e compromisso com o Reino de Deus”, Manuel Quintero Pérez e Carlos Sintado, Kairós Ediciones, 2007.


Foto: © David Sidwell - Copyright © 2008 TrekEarth

11 maio 2008

Mandou-o ao inferno

Desde a época em que um estudante universitário em conflito me relatou em uma longa carta de 16 páginas (sim, ainda não existia e-mail...) seus horrores com a maneira em que ele havia sido “evangelizado”, tenho dificuldades em “usar” o conceito ou a realidade do inferno em conversas com não-cristãos.

Interessante notar que quando Jesus falou do conceito de punição e justiça, o fez com os religiosos, mas não o usava em seus encontros com os aflitos necessitados da graça.

Lembro-me de outro amigo, um bom companheiro de moradia enquanto éramos estudantes na universidade. Ele me revelou sua luta interna mais ou menos assim: “Não posso imaginar que abraçarei uma fé que me leve a crer que aquelas pessoas queridas de minha família, algumas das quais já morreram, e que não abraçaram essa mesma fé, irão para algum tipo de sofrimento eterno.”

Era um dilema real, honesto e humano. Não me recordo bem das palavras com que lhe respondi, mas foram algo na direção de que esse Deus em quem eu cria era muito mais justo do que qualquer noção de justiça que pudéssemos ter. E que Ele saberia resolver esse “problema” melhor do que nós mesmos. Nossa parte era confiar e abraçar o que nos parecia correto, verdadeiro, o que nos levava à vida.

Esse dilema também atingiu a Charles Darwin. No final de sua vida, escreveu em sua autobiografia que não podia “entender como alguém devesse desejar que o Cristianismo fosse verdade”. Caso fosse, a linguagem do Novo Testamento “parecia mostrar que os homens que não têm fé, e isso incluiria meu pai, irmãos, e quase todos meus melhores amigos, seriam eternamente punidos. E essa era uma doutrina abominável”.1

Talvez fosse interessante perguntar por que supostamente só os amigos ou parentes mereceriam tal compaixão. Mas é fato que primeiro sofremos com eles e por eles. E isso pode se tornar, no caso de não se tratar de uma desculpa ou escape vil, em um elemento legítimo de crise que embaça ou bloqueia o caminho para que alguém experimente a misericórdia e a graça.

Parte desse problema, creio eu, se dá porque a muitos cristãos lhes parece importante determinar o destino eterno de alguém, em especial dos incrédulos.

Não desejo entrar aqui em águas ou chamas perigosas da doutrina do inferno. Podem me chamar de covarde, que a crítica me cairá bem. Mas queria sim levantar alguma reflexão sobre o uso que fazemos desse ensinamento ou acerca de nossa ânsia por ter “controle” sobre o assunto, dizendo de antemão e com segurança a quem caberá o quê.

Graça e misericórdia não existem sem a noção de justiça, isso é certo. Mas reluto em ser como Jonas quanto aos ninivitas. Porque se acho que posso ser mais justo do que Deus, toda minha injustiça e egoísmo ficarão dolorosamente expostos.

O universitário do início do texto hoje segue a Jesus com alegria. Não foi o obscurantismo dos filmes de terror “evangélicos” que o “evangelizaram”. Não foi quando lhe enviaram ao inferno que ele conheceu a Jesus.

Foi assim. Ele ouviu uma batida na porta e uma voz que do outro lado lhe chamava. Relutante abriu, e logo com confiança andou, levado por aquele que lhe tomou pela mão.

1 Darwin: a vida de um evolucionista atormentado, Geração Editorial, p. 643

Foto: © Adilson Faltz - 2008 TrekEarth

03 maio 2008

Você enviaria seu filho a uma faculdade cristã?



Como você responderia à pergunta do título? Veja bem que você pode fazer amigos ou inimigos dependendo de como a responde.

Por um lado, poderia cair no equívoco de desconsiderar o valor que se deu à educação em séculos de missão cristã no mundo. Também poderia, caso fosse alguém conhecido e dessem ouvidos à sua opinião, afetar os interesses econômicos e mesmo a viabilidade de várias instituições.

Vendo por outro lado, poderia ser um saudável exercício de questionar as motivações por que um indivíduo (ou sua família) prefere ir estudar em um centro de estudos conhecido por sua confessionalidade ou por suas tradições cristãs. O que buscariam ao refugiar-se em uma escola assim?

O tema é complexo, suscita paixões e polêmicas. Talvez por isso é que Stacey Woods, há mais de 60 anos, precisamente em 1944, tenha escrito um artigo usando um pseudônimo, na revista HIS, da IVCF-USA, com o sugestivo título “Deveria ir a uma Faculdade Cristã nesse outono?”.1

Stacey foi esse entusiasta australiano que assumiu como o primeiro secretário geral dos movimentos estudantis cristãos debaixo do guarda-chuva da IFES, e que à época desse artigo estava ainda “somente” liderando os movimentos estudantis da IVCF-USA e IVCF-Canadá, ao mesmo tempo!

No referido artigo, após animar jovens estudantes cristãos a escolherem uma faculdade “não-cristã”, ele lançou o alerta: “Cuidado com o perigo de viver em outro mundo, falhando em entender o mundo dos homens e mulheres não convertidos, com os quais ao fim você terá que conviver, e diante dos quais você terá que testemunhar.”

Ele então concluiu com as retumbantes palavras: “Porque o campus secular é o seu campo de missão e sua gloriosa oportunidade. Deus o colocou aí para ser Sua testemunha – Seu missionário – Seu embaixador.”

Em meu caso, se me permitem a confissão, fico pensando se não deveria eu mesmo escrever esse breve artigo usando também um pseudônimo. É porque eu estudei em uma faculdade cristã e desfrutei da experiência. Mas também poderia defender-me dizendo que já estudei em uma universidade “secular” e que essa foi a mais significativa experiência de aprendizado (inclusive quanto à maturidade cristã) de minha vida.

Ou então a incoerência maior viria por minhas filhas. Ambas estudam em uma escola confessional cristã e que ainda por cima é vinculada à comunidade cristã onde nos congregamos.
Ora, ao fim, poderia desavergonhadamente dizer que me proponho aqui a levantar perguntas, inclusive para mim mesmo, e não a tentar ser coerente. E que talvez revisando nossas motivações e “estratégias” possamos todos, cada um em sua praia, vocação e caminho, sermos as tais testemunhas e missionários a que o Stacey se referiu.

Ou ainda ser um bom “embaixador do evangelho”, como Woods concluiu em seu artigo lá dos anos 40. Só uma última e rápida dica: sugiro não usar esse singelo nome para seu grupo estudantil na tal universidade não-cristã. Abraço e até a próxima!

1 Citado em "C. Stacey Woods and the Evangelical Rediscovery of the University", A. Donald MacLeod, IVP Academic.

Foto: © Rice
Upload feito originalmente por wools