16 novembro 2009

Jenga, a culpa do rico e as desculpas do pobre

Em um evento recente no Texas, à pergunta de um jovem estudante sobre o que fazer para mudar a mentalidade de um viciado em drogas que mendiga nas ruas, Ramachandra rebateu perguntando por que as pessoas sempre questionam o pobre, e não o rico, quando se trata de mudanças.

Vinoth Ramachandra é o secretário de IFES para o Diálogo e o Compromisso Social, autor de vários livros com profundas reflexões e saudáveis provocações acerca da missão da igreja, entre eles o ótimo e mais recente “Subverting Global Myths”.

Nele ele confronta alguns mitos que vêm conformando a cosmovisão dominante em nossa era, muitas vezes excluindo outras maneiras de enxergar a realidade, e obviamente afetando o modo como nela intervimos. Os temas são tão amplos como desafiadores, diversos mas conectados, como o terrorismo, a violência religiosa, os direitos humanos, o multiculturalismo, a Ciência e o pós-colonialismo. Vale a pena sua leitura e a torcida para que em breve esteja disponível em português.

Voltando à maneira como Vinoth respondeu à pergunta que lhe foi dirigida nesse evento em uma universidade texana, penso no triste fato de que muitos destituídos já assimilaram essa visão de que a culpa deve ser em última análise algo que lhes toca. Recordo do episódio quando minha esposa tentou ajudar um hurgador (“catador de lixo”) nas ruas de Montevidéu, onde vivemos, quando ele não parava de lhe pedir desculpas. Ora, ele não havia feito nada que justificasse seu pedido, mas era como se sentisse que ele era um estorvo e uma carga em uma sociedade limpa e exclusiva. Chocou-nos essa óbvia percepção de que estávamos mais do que nunca desse lado de cá desse muro de exclusão.

Outro dia eu jogava Jenga® com minha filha mais nova, de 6 anos. Trata-se daquele jogo de blocos de madeira empilhados, em que se busca fazer a torre cada vez mais alta. Entediada com sua pequena metáfora da Babel bíblica, ela me propôs um jogo diferente. Faríamos um hotel com os bloquinhos. “Que faremos no hotel?”. Sua resposta foi que não era pra nosso desfrute e sim para os pobres do mundo todo.

Surpreso com a súbita consciência turístico-social de minha filha, amei a explanação de seu projeto. “Será para os pobres do mundo que não têm casa.” Me arrastou até o mapa-múndi que temos na parede e me pediu que a mostrasse onde havia pobres. “Ui, tarefa difícil, ou fácil, não sei, estão por toda a parte.” Passemos a outro ponto, “como construiremos o hotel?”. “Essa é fácil”, disse ela, “pediremos ajuda dos países ricos” (será que ela andou vendo muito noticiário sobre reuniões do G-8 ou do G-20?).

A coisa avançou, com uma lista de tudo o que deveria conter o tal “Grande Hotel Jenga para os pobres do mundo”. Outra surpresa, “um cassino?! Para que um cassino?”, perguntei intrigado. “Ora, para conseguir mais dinheiro para os pobres!”. Fabuloso! Robin Hood estaria orgulhoso da ideia de sua discípula mirim sobre como sacar dinheiro dos ricos e destiná-lo aos pobres.

Claro, ao fim, aproveitamos para uma breve reflexão de que o esforço começa em nossa casa, em nossos pequenos atos e atitudes, assumindo nossa responsabilidade. “Também somos ricos”, disse quase arrependido quando pude vislumbrar em seus olhinhos a maquinação para o próximo pedido de aumento da mesada. Tudo bem, o acréscimo será um pequeno sacrifício caseiro perto das mazelas e injustiças de nosso mundo.

Com a construção terminada te convidamos ao grande hotel. Também ao cassino, claro. Perder dinheiro aí será por uma nobre causa.

Foto: Jenga® en el campamento de CBU (2008).

25 outubro 2009

O tempo, o sonho e a conexão



Falar de suas próprias experiências, do que lhe é mais íntimo e pessoal, implica em óbvias limitações. Por sua natureza, elas não são normativas, somente podendo aspirar a ser humilde ilustração, exemplo, talvez uma motivação para o outro. Com a confiança de que o pedido implícito de perdão dessa introdução seja considerado, conto-lhes o encontro e o sonho que tive.

Recebemos a visita de um casal de amigos. Não tão jovens e já maduros na vida, darão em breve o passo de unir-se em casamento. Depois que se foram, fui dormir comovido pelo convite que fizeram para que eu lhes dirigisse a palavra em sua cerimônia.

Dormi e sonhei. Aclaro em uns parênteses. De maneira alguma esse seria um “método” que utilize para preparar alguma mensagem. Raras vezes me lembro de sonhos, ainda que já tenha refletido
aqui sobre a relação entre sonho e chamado, e também já tenha compartilhado uma disciplina espiritual que aprendi relacionada ao tempo em que dormimos.

Resumindo, sonhei que Ruth, minha esposa, e eu saíamos de uma visita. Essa havia sido inundada por um peso emocional negativo. Saíamos cabisbaixos. Então recordo que comecei a falar com Ruth sobre
“Culpa e Graça”, de Paul Tournier.

O colóquio girou em torno ao conceito de culpa falsa e culpa verdadeira. Em um mover crescente de intimidade, cumplicidade, entendimento e aceitação mútuos, em que Ruth com seu olhar já entendia o que eu queria dizer, e inclusive completava as frases que minha emoção bloqueavam ainda na garganta, choramos juntos.

Foi, se me permitem prosseguir em minha confissão e exposição íntima, um êxtase de profunda conexão. Quando despertei, o primeiro que quis fazer foi lhe contar em detalhes tudo o que havia sonhado. Aquilo que por anos eu reclamei de Ruth (o completar minhas frases ou pensamentos antes que fossem concluídos) foi no sonho o mais puro sinal de uma especial conexão de vida a dois. Daquelas que levam toda uma vida para cultivar, em abertura, confiança e entrega mútuas.

Uma vez li em um artigo que defendia o “amor livre dos fardos do compromisso eterno” (perdão que não encontrei esse texto agora) que seria impossível, por exemplo, ter sonhos eróticos com o cônjuge de muitos anos. Obviamente que discordo, em todos os sentidos. O tempo é exatamente a oportunidade que se é dada para a aventura do enlace mútuo, de descobrir-se nos olhos do outro e entregar-se em verdadeira intimidade, e não em uma caricatura fugaz da mesma.

Ainda não sei bem como abordar o tema no sermão do casamento. Mas já tenho um ponto por compartilhar. Conhecer o outro leva tempo. Por isso se requer toda uma vida. Mas a conexão verdadeira a que chegamos vale todo o esforço e perseverança. Sim, vale.

Foto: © Ciruelito
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Milagros Sierra

31 julho 2009

A verdade nua e crua



50 cm e 3,540 Kg. Assim, direto ao ponto e com riqueza técnica recebi ontem uma chamada anunciando o nascimento de meu sobrinho.

Isso me fez pensar por que nos fascinamos com certo tipo de informação e não com outro? Por que me interessa saber quão grande nasceu o rebento (com implicações diretas para a dor da feliz mãe) e não perguntamos, por exemplo, se ele é bonito como um ou inteligente como o outro (falando dos progenitores, é claro, e deixando com os mesmos a disputa por um ou outro atributo...).

A verdade, nua e crua, é que outros detalhes são menos prazerosos e um tanto incômodos: a usual cara amassada, o choro, a dor da mãe, o cansaço do pai (ou a vergonha por ter desmaiado na sala de parto), etc.

Mas não devemos perguntar sobre o que é incômodo, ou devemos? Lembro-me dessa metáfora que Kierkegaard usou para referir-se ao que seria um evangelista. Seria aquele que fica escondido por detrás de um arbusto, e quando o transeunte passa, sai de onde está, lhe dá um pontapé no traseiro, e volta a esconder-se. O caminhante se vira, não entende o que lhe passou, e segue o seu caminho.

Mas agora sua caminhada será diferente. Estará pensativo, intrigado, tentando imaginar o que pode haver passado. Há algo mais que ele não entende, não sabe a resposta, e isso o faz questionar-se, sair de suas próprias certezas. Andará mais desconfiado e atento. Alguém o incomodou em seu mundo sólido e seguro.

Quando dou aulas sobre evangelismo, animo os alunos a seguir a metáfora do dinamarquês. Saiam e dêem seus pequenos pontapés! “O cara me disse que os crentes são pobres”. “Claro, diz pra ele que somos todos pobres, eu, você, ele, todo mundo! Ou ele acha que é algum tipo de faraó que levará pro além dinheiro, servos e concubinas?” Se digo pra alguém que somente quando reconheço minha pobreza absoluta posso então encontrar a riqueza verdadeira, esse é um bom cutucão em seu orgulhoso traseiro.

“Ah, esses religiosos abraçam sua fé como uma tábua de salvação, são uns fracos!” “Claro, e eu racionalmente te explico que você abraça a tábua de sua razão como uma bóia e ídolo, sem admitir sua idolatria, enquanto eu reconheço que abraço minha fé, aceitando que ela é razoável, mas que também é baseada em uma revelação que vai além do racional. Se respeitosamente assentimos que cada um tem a sua bóia, então podemos conversar aberta e honestamente sobre onde encontramos a que cada um leva debaixo de seu braço e aonde esperamos chegar com elas”. E antes que eu me esqueça, foi o mesmo Kierkegaard quem disse que somos todos fracos, que há só um que é “o forte”. Mas volto a esse ponto em outro momento.

Como foi que saímos de um bebê e fomos parar em pontapés filosóficos nos traseiros alheios? Acho que o nexo foi esse de aprender a cortesmente incomodar o outro sobre as verdades mais profundas e importantes da vida, certamente um bom e saudável exercício.

Concluindo, devo dizer, a crua verdade é que o garoto de fato nasceu bonito! Teria puxado o tio? Não, melhor deixar essa ilusão vaidosa, antes que me dêm um pontapé...

Foto: © Life seems harder than we think
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Alexandre Bertin

10 junho 2009

A fama é um mal-entendido


“Quais são os famosos que vocês estão produzindo hoje?”. A pergunta direta fez a farofa do frango entalar. Foi em meus tempos de ministério com a ABU quando curtia um até então pacífico intervalo gastronômico nessa interessante conferência missionária em terras mineiras.

Ante meus olhos esbugalhados e atento a um ossinho galináceo pendurado em minha muda boca, meu interlocutor, um importante líder eclesiástico, aparentemente resolveu esclarecer sua indagação. “Digo, no passado, vemos que nomes hoje destacados, como Valdir Steuernagel e Robinson Cavalcanti, militaram nas bases da ABU. Quem são as pessoas famosas da próxima geração que vocês estão preparando hoje?”

A lembrança do episódio me remete a um excelente escritor uruguaio, Juan Carlos Onetti, que se estivesse vivo completaria seu centenário nesse ano de 2009. Dizem seus biógrafos que para ele a fama era obra de um mal-entendido. Em suas palavras:

“A grande maioria de nossos escritores trata de alcançar o triunfo. E a esse se chega de maneira incidental e nunca deliberada. Se alcançamos o êxito nunca seremos artistas plenamente. O destino do artista é viver uma vida imperfeita.”1

Deixo para críticos literários a avaliação se isso é algo mais do que o arroubo e o drama de um artista. Ou se há alguma verdade importante em suas palavras. Por agora, não deixo de pensar no papel dos profetas bíblicos e em seu aparente quase sempre “fracasso”.

Outros poderiam argumentar que o artista só é artista quando busca a fama e o reconhecimento público. E que talvez essa ambição seja mais comum e universal do que gostaríamos de admitir.

Pois bem, uma vez que falamos de artistas e de escritores, tomo a liberdade de abusar de sua paciência com outra citação, agora brasileira e machadiana:

“Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego…”
2


Claro, também decida o leitor porque alguém escreve e publica sobre o assunto da fama, se não é o caso que ambiciona ser lido por muitos. Não seria essa uma contradição interna? Ou pelo menos um flerte com essa tal busca pela ‘glória temporal’?

Ou seja, isso me obriga a refletir sobre a característica própria quer seja do artista, do escritor, do profeta, do pregador, ou da simples testemunha de sua fé em Cristo. Sobre essa que me parece ser uma obrigação inescapável, a de que vivam a expressão de seu ser e do que produzem para que todos vejam, para que esteja aí, na esfera pública.

Ora, nenhum crente em Cristo é chamado a esconder-se. Sempre deve expor tudo o que é e o que crê ao crivo do juízo público. É parte da essência de sua própria fé. Ou parte da própria identidade do profeta ou do artista.

Teria então razão meu nobre colega pastor que interrompeu meu seco galináceo? Creio que não. No mínimo diria que sua pergunta estava fora de foco. Isso porque penso em duas marcas necessárias do artista, profeta ou do ‘cristão comum’: integridade e compromisso público.

Primeira, a integridade que aponta à honestidade de sua própria essência interna, à fidelidade quanto à sua identidade. Para o crente ela vem dessa convicção profunda produzida pelo chamado de seu Senhor.

E a segunda, o compromisso público que tem a ver com a ‘prova’ exterior do cumprimento de seu chamado, que por sua vez sempre deve ser vivido debaixo do olhar alheio. O chamado daquele que carrega uma verdade que só é verdade quando é contada a todos. Mas que nessa exposição corre um duplo risco: o da rejeição e o da fama.

Óbvio, ambos são riscos. A desaprovação sempre é algo sofrido pessoalmente e pode levar, ou não, à revisão de sua integridade íntima. Aquele que é rejeitado pode querer ao fim abandonar sua verdade em função do acolhimento alheio. Por isso mesmo trata-se de uma tentação.

E a fama também o é, na medida em que sou levado pelo deleite da glória e da aceitação, esquecendo-me que ela é muito mais fruto de um incidente, e que também pode distrair-me de minha vocação mais sublime, que nem sempre me levará ao aplauso.

“Quais são os famosos que estamos produzindo hoje?” Não sei, nem me importa a pergunta. Mas se ajudo a formar discípulas e discípulos íntegros, fiéis ao seu chamado, em lugares ou circunstâncias que pouca atenção venha a receber dos microfones e holofotes, entendo que devo estar contente. E feliz volto ao meu frango com farofa.

1 Oneti. Perfil de un solitário Omar Prego Gadea, Ediciones de la Banda Oriental, 1986, p. 38.

2
Memórias Póstumas de Brás Cubas Machado de Assis. Agradeço ao Laion Monteiro por essa citação.


Foto: ©
Applause

Upload feito originalmente por Justin Cormack

Artigo escrito originalmente para o Portal Cristianismo Criativo

02 maio 2009

Entre livros, mentiras e o microscópio de Satanás



Depois da tensão, houve um silêncio. Ela inclinou seu rosto e, antes de ir-se, disparou “você leu e estudou muito”. Como para ela isso não foi um elogio, e orgulhosa de sua suposta ignorância, partiu dando o assunto por encerrado.

Foi já há alguns anos. Eu estava ali, naquele lindo estado com nome de uma das pessoas da trindade, onde devia expor todo um livro da Bíblia, do começo ao fim, durante uma semana. Tudo bem, eram somente quatro capítulos, mas ainda assim uma tarefa e tanto.

A jovem estudante universitária não entrou no mérito de minha abordagem do texto bíblico que levava a cabo cada manhã. Na verdade, o que a havia incomodado era minha posição (ou a falta de) com relação a uma festa à fantasia que os estudantes haviam organizado naquele agitado evento da ABU.

Não sei bem se foi algo quanto às fantasias usadas, ou se pelo ar de festa, ou se o fato que havia alguma tímida dança, ou ainda devido a alguma das músicas tocadas. Talvez não tenha ajudado muito que ela me visse em minha improvisada e precária fantasia de Lanterna Verde. Bom, não quero me justificar, que não é do meu estilo, mas ela não era mesmo muito vistosa. Fiz o que pude com as peças verdes que casualmente havia levado ao acampamento.

Já havia perdido boa parte da festa nessa conversa. Não sei se as preocupações pastorais devem sempre vir antes do prazer, mas naquele momento em que fui "acusado" sobre minhas muitas supostas leituras, quase me arrependi de haver dado prioridade a essas tais preocupações. Além do mais, já pensava que o mais “fraco na fé” (aquele que vale seu peso em ouro e todo o cuidado que possamos oferecer) possivelmente não era, nesse caso, quem me julgava e que espetava seu dedo acusador em meu verde nariz.

Interessante essa idéia sobre como a muita leitura pode prejudicar sua fé. E olha que segundo uma investigação feita no Reino Unido, muitos mentem sobre o que lêem para buscar impressionar a alguém. E outros ainda ocultam o que de verdade lêem temendo ficar negativamente associados a alguns autores ou a certo tipo de literatura. Bizarro isso, não? Melhor que alguém não me pergunte sobre os livros que ando recomendando por aqui, ou sobre outros que leio sem mencionar. Mentirei até a morte ou até ser resgatado pelo Lanterna Verde.

Seria algo comum essa associação entre o muito estudar e a falta de fé? Unamuno nos conta desse quadro em um seminário da Companhia de Jesus, em que Satanás, pisado pelo arcanjo Miguel, tinha em suas mãos um microscópio! “No que diz respeito aos chefes daquele estabelecimento, investigar demasiado a natureza e o significado das coisas era assunto diabólico.”1

Para mim, o maior perigo é o achar-se sábio, crendo que não preciso ouvir o outro e suas percepções distintas das minhas. Por isso ainda acredito que fiz bem em dedicar meu tempo para aquela conversa. O dia em que pensar que minhas leituras e meu suposto saber me bastam, terei que arranjar uma fantasia de vilão para a próxima festa.

Falando em festa, voltei em tempo de participar do concurso de fantasias. Claro, perdi. É certo que terei que comprar e ler o “Faça sua própria fantasia com sucesso”. Quem sabe vou de arcanjo na próxima. Será melhor, e mais seguro, do que ir com um microscópio nas mãos.

1 A história sobre Unamuno e a citação são de Juan A. Mackay, em “El Otro Cristo Español”, Ediciones La Aurora, p. 127.

Foto: ©
Under the microscope
Upload feito originalmente por bjarkihalldors

29 abril 2009

Uma deusa, intelectuais e um manual



Não sou economista, nem adivinho o futuro, mas confesso que gostaria de viver em um mundo melhor, para mim, para minhas filhas, e para os outros bilhões de pessoas como a gente que dividem a vida nesse planeta.

Também confesso que fico encasquetado com os mitos e dogmas em volta da deusa que comanda tudo ao redor nosso, e que parece ditar se meu desejo pode ou não tornar-se realidade: a poderosa deusa Economia.

Foi assim, entre desencantado e incrédulo que li a notícia da euforia (possivelmente passageira) que tomou hoje o mundo financeiro com os dados que apontam uma retomada do consumo entre cidadãos norte-americanos.

A lógica é bastante simples. Ou pelo menos parece ser. Com mais consumo (vida breve aos poupadores!), mais demanda de produtos, mais emprego para todos (bem, na verdade não todos, porque, segundo a tal deusa, é adequado ao sistema que haja um percentual da força de trabalho assim, digamos, fora do sistema, mas vendendo sua alma para entrar...).

A riqueza produzida cresce e todos ficam felizes. É claro que há um grupo seleto que fica mais contente, aqueles que conseguem receber e concentrar parte substancial dessa riqueza. Alguns até poderiam argumentar que mesmo o historiador marxista Hobsbawm já reconheceu algumas benesses da ideologia do neoliberalismo de mercado livre:

“Seu objetivo não era abolir a pobreza, ou redistribuir recursos e gerar justiça social; ainda assim, apesar de tantas injustiças como existem, até os pobres viram sua situação melhorar, ao ponto de aceitar o atual estado das coisas.”1 (ou seja, em uma humilde paráfrase: mais qualidade de vida para todos não necessariamente rima com justiça social).

O que ainda fico pensando é se devemos aceitar, entre tantos mitos que os profetas da deusa nos pregam todos os dias, que consumir desenfreadamente seria a solução. Ou se faz algum sentido desejar que os PIBs de cada nação do planeta continuem a crescer indefinidamente, em um ritmo insano de ganância e de expropriação do mundo em que vivemos.

Uma sugestão: leia a entrevista que saiu já há um tempo na que é a melhor revista que apareceu nos últimos tempos (Vida Simples). O entrevistado é o economista e filósofo francês Serge Latouche, falando sobre decrescimento sustentável. Pode soar loucura, idealista e não factível, mas me pergunto se as verdades mais sanas do mundo, como as do evangelho de Jesus, não parecem exatamente ser feitas desse mesmo componente tão utópico, mas tão profundamente real e necessário.

Também veja e compartilhe um manual bem interessante que orienta acerca de estilos de vidas saudáveis, baseados em padrões de consumo sustentáveis.2

Pode ser pouco, pode ser pequeno, mas já imaginou se muita gente começa a pensar e a agir diferente?

1 Entrevista sobre el siglo XXI, Eric J. Hobsbawm, Biblioteca de Bolsillo, Crítica, 2004, p. 110.

2 Agradeço a meu amigo Lissânder pela dica desse excelente material.

Foto: ©
Concentración
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23 abril 2009

O padre e nosso pecado




– Você, sabe, Zé, que a Uruguai muitas vezes lhe chamam Paraguai...
– Sim.
– Pois é...
– E...
– Já pensou se nosso presidente fosse aquele padre?
– Ô, Mané, você não está querendo julgar o homem, está?
– Julgar? Quem sou eu? Talvez invejar...
– Opa, deixa a Menê saber disso.
– Não, deixa minha mulher fora disso. Escapou, só isso. Na verdade não queria nem morto estar metido nesse rolo. Mas fico pensando, Zé.
– Em quê? Nos pecados do homem?
– Mais ou menos. Fico matutando sobre como ele pecou.
– Ah, agora mesmo é que eu falo com a Menê. Está é fantasiando em cima das aventuras do dito cujo.
– Não, não é isso, Zé.
– Então, que é?
– Sei lá, fico aqui me perguntando, e se ele tivesse usado aquilo?
– Aquilo o quê?
– Ora, o negócio, o preservativo.
Zé balançou seu corpanzil, apertou seus olhos, hesitou por um momento, mas atirou de volta:
– Mas isso é pecado, Mané.
– E aquilo outro, ou as outras, sei lá, tudo isso não é também?
– Sim, mas... talvez ele e inclusive elas, não pensassem assim. Era amor, e amor não pode ser pecado. Bem, não estou bem certo, e você nunca vai contar isso pra Astrô, deixa minha mulher fora disso. Mas se supormos que eles pensavam que o que faziam era algo sublime, até tem um, digamos, fruto, com o nome do saudoso papa. É certo que para eles era algo mais elevado, mais nobre. Colocar essa coisa de camisinha aí no meio seria pecado e ponto.
Foi a vez de Mané balançar a cabeça, visivelmente contrariado.
– Ainda não entendo as divisões que a gente faz sobre o que é e o que não é pecado... São essas nossas contradições e incoerências. Tem razão aquele salmista ou profeta, nem me lembro mais, que diz que o nosso tal coração é muito enganoso. A gente se engana, Zé, pra fazer o que no fundo sei que está mal. Acho mesmo que a gente passa a acreditar que nem é algo tão ruim assim, ou até mesmo reconstruímos, recontamos a história no nosso coração de modo que acho que é justificado, nobre, ou que eu não tinha outra alternativa se não esse caminho...
– Que puseram nesse seu mate, Mané?
– Nada, nada...
...
– Zé!
– Quê, Mané? Já quer voltar a falar do padre?
– Não! Faz tempo que nem penso mais nele. Estou pensando em mim...
– E...
– Sabe, Zé, você me faz um favor?
– Diga!
– No dia em que eu estiver fazendo algo achando que estou tudo beleza, quando na verdade eu estiver metendo o pé na... você sabe...
– Na lama.
– Isso, pode ser, na lama. Você me dá uma mão?
– Como?
– Bom, talvez não me deixando só. Pode, e deve, me perguntar, provocar, questionar, puxar meu tapete, não deixe eu me enganar!
– Hmmm... Será que funciona?
– Na verdade, não sei, mas se é para vigiar e cuidar, creio que com dois será melhor que com um sozinho.
– Certo... E se for uns vinte?
– Embora, Zé!
...

Foto: ©
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16 abril 2009

Sobre rótulos e ídolos



“Você é conservador?” Foi assim, na lata, que um aluno procurou arrancar de mim uma confissão. Voltávamos juntos no ônibus, depois daquela primeira aula. Uma vez que recém havíamos nos conhecido, quis sondar em que “time” eu jogava.

“Bem, depende do quê você está falando e do que você entende por essa palavra”, lhe devolvi em meio a um sorriso quase dissimulado.

Nesse dia voltei a pensar em nossa necessidade de definir de antemão quem são nossos interlocutores. Sobre esse desejo de conhecer de onde falam, a que tribo pertencem, e assim supostamente preparar-me para melhor escutá-los. Na verdade, para alguns, essa inclusive é a senha para escolher a quem eu dedicarei, ou não, meu precioso tempo.

Se já consigo adivinhar ou enquadrar a fulana em algum grupo, e se essa linha de pensamento em particular não me atrai, se me desgosta, então não a ouço, não a leio, ou ainda o faço mas com o objetivo de refutar-la desde minha cômoda e confortável posição já bem definida.

Outro dia tive uma grata surpresa ao ler um artigo de um excelente historiador uruguaio, Lincoln Maiztegui Casas. Tenho admirado a qualidade e o rigor de seus escritos, que vêm me apresentando uma faceta interessante da história política do Uruguai. Escreve bem, além de desfilar sua integridade intelectual.

Essa última foi mais uma vez atestada outro dia quando ele, que é rotulado como um autor mais à direita no espectro político, digamos que um “conservador”, nos regalou um breve e interessante artigo sobre a queda de um de seus “ídolos” (La irresistible caída de Paul Johnson) .

Ao revelar sua admiração pelo historiador britânico, mostrou-nos como ler bem e criticamente. Ao fazê-lo nos confessou sua descoberta. Seu herói veio ao chão. Não dava mais para tragar os equívocos ou os preconceitos desvelados por uma cuidadosa leitura. Bem-vinda lição de que a simpatia ou adesão a uma ideologia não devem quitar nosso juízo crítico.

Se me contento apenas com a primeira impressão, ou se aceito qualquer coisa apenas pela imagem e pelo nome de quem veio a opinião, caio em armadilhas causadas pela preguiça intelectual.

Então os rótulos são assim. Evitam que eu “leia” bem a vida e os aportes que o outro tem para me oferecer, para me desafiar. Por isso tenho que encontrar-me com aquilo que me incomoda, que me tira de minha posição cômoda, que me faz pensar e amadurecer naquilo que sou e em que creio.

Meu aluno ficou sem resposta. Por uma desventura, ou para minha felicidade, meu destino chegou logo depois daquela capciosa pergunta. Melhor assim. Através de seus olhos e de sua “leitura”, mais do que ele espero ganhar eu novas percepções de minha própria identidade, crescendo e amadurecendo, como na vida deve ser.

Foto: © Paris, 26/04/2008.
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24 março 2009

Lições de sobrevivência



Que impacto pode nos trazer um incêndio florestal ao redor de um acampamento estudantil? Minha própria resposta a essa pergunta creio que quitará o mérito do fogo, talvez não fale tanto do milagre que ali ocorreu, e centrará a busca por aprendizado nas reações de cada um dos sobreviventes.

Era o penúltimo dia do encontro nacional de capacitação do GBU Chile, nesse lindo acampamento que GBU possui em Río Quino, cerca de 8 horas ao sul de Santiago.

Eu havia sido convidado a dar estudos sobre a espiritualidade do coração e do cotidiano, a partir da vida de Davi em 1 e 2 Samuel. Lindo desafio!

Na véspera de terminar o encontro, fomos surpreendidos com um incêndio que se acercava às instalações. Ao tentar mobilizar uma equipe para cortar o caminho do fogo, rapidamente tivemos que mudar de idéia e evacuar a todos no menor tempo possível, pois o fogo já havia tomado os abundantes arbustos e as árvores que rodeiam a área do acampamento.

Com muito vento, e o fogo literalmente saltando ao nosso redor, víamos uma única possibilidade. Refugiar-nos no rio, em um local onde ele é um pouco mais largo, a cerca de 15 minutos de nossas cabanas.

A última imagem gravada em nossa retina em meio à escapada foi a de um fogo alto que tomou por completo toda a área em que estavam os prédios do acampamento.

Ficamos cerca de 1 hora e meia, nesse ponto mais baixo, literalmente dentro do rio, sem saber bem o que acontecia ao redor. Escutávamos o fogo, víamos a fumaça e também o helicóptero que combatia o incêndio, mas não podíamos fazer muito mais do que esperar.

Quando dois bombeiros chegaram até onde estávamos e nos disseram que havíamos que sair rapidamente dali foi, confesso, quando mais temor senti. O grupo já estava cansado, física e emocionalmente, e haveria que evacuá-los uma vez mais, em meio a uma zona de incêndio.

Depois de um longo recorrido por terreno acidentado, cercas e fumaça, chegamos a salvo na margem da autopista onde se havia originado o fogo. No total, 3 horas literalmente correndo pela vida. Lições? Creio que muitos ainda estão processando, como eu, tudo o que passou. Assim mesmo me arrisco a algumas observações.

Valor de cada um

Creio que Deus fez com que, em meio da crise, o valor e os dons que Ele dá a cada um se fizessem evidentes para o bem comum. Houve quem orasse, cantasse, quem cuidou daqueles que necessitavam de calma, quem ajudou quem não se sustentava no rio, e os que se apoiaram na fuga em terreno acidentado.

Tomo a liberdade de nomear a uma pessoa, Carmen Castillo, secretária geral de GBU Chile. Ainda que seu esposo, sua filhinha e sogra estivessem em uma casa muito próxima ao acampamento que foi tomado pelo incêndio, e sem saber mais notícias deles, de algum lugar ela arrancou forças e espírito de liderança para conduzir todo o grupo em segurança. Creio que bem poucos conseguiriam fazer o que ela fez num momento de tensão como esse.

Entrega e desprendimento

A primeira coisa que fizemos quando chegamos à estrada foi orar e agradecer por nossas vidas, mesmo que supostamente havendo perdido tudo. É que nossa última “fotografia” do local nos fazia crer que tudo se havia queimado. Foi só quando os bombeiros nos permitiram voltar que atestamos com nossos próprios olhos que os prédios e cabanas de madeira ainda estavam ali.

Para mim a prova mais importante aí foi testar nossa capacidade de entregar o que temos, mesmo que seja algo valioso e querido por nós. Inclusive o próprio acampamento, um espaço com certeza usado por Deus para abençoar. E se ele se queimasse? Bom, creio que Deus faria o que lhe é próprio, seguir com sua obra, reconstruir, utilizar-nos, com ou sem prédios, com ou sem recursos. Bom, na verdade com um recurso primordial, nossa vida em suas mãos.

Um livramento

Até para um cético pouco afeito a milagres como eu, o livramento que Deus nos proporcionou foi algo forte. O fogo passou literalmente a centímetros das cabanas de madeira, também protegeu com mão firme e misericordiosa alguns poucos que haviam ficado para trás, incluindo a família de Carmem, o caseiro e 2 estudantes que voltaram para ajudar a combater o fogo. Deus sempre nos livra dos perigos? Creio que não. Mas aí claramente nos livrou e ainda há que meditar nas lições e oportunidades que se abrem para nossa maturidade espiritual com esse livramento.

Sacrifício

Poucas vezes, ou talvez nunca antes em minha vida, tenha visto tanta gente jovem trabalhar tão duro como o fizeram na madrugada e dia seguintes ao incêndio. Estavam cansados, esgotados, e ainda assim não dormiram, vigiando e apagando focos de incêndio que voltavam a aparecer, com pás e enxadas nas mãos e carregando pesados baldes de água em largas distâncias. Sem reclamar e me parece que mesmo sem medir o tamanho do esforço que faziam.

Certamente que foi toda uma experiência, muito vigorosa e intensa. As lições? Ainda se necessitará tempo para pensar em tudo o que se aprende, e há que passar esse testemunho às próximas gerações estudantis. Destaco aqui, por enquanto, essas rápidas lições:

• Se estivermos nas mãos de Deus, Ele pode sacar o melhor de nós em meio a uma crise (infelizmente, o oposto também é verdade);
• O recurso mais importante que podemos ter não são nossos bens ou recursos, mas nossas vidas nas mãos de Deus;
• Mesmo que Deus não nos livre sempre dos perigos, há que reconhecer quando Ele com suas mãos intervêm em nossas vidas e meditar sobre as oportunidades que Ele nos dá;
• Quando a mão do Senhor está comigo posso fazer coisas que humanamente pensava que não estavam a meu alcance fazê-las.

Viu como as “mãos de Deus” apareceram em cada uma dessas 4 lições? Creio que foram elas que mudaram vento, protegeram, sustentaram no rio e nos levaram em cada momento. Veja só, até um cético como eu foi capaz de enxergar essas mãos. Obrigado, Senhor!

Fotos: Sandra Aravena (GBU Chile)

22 março 2009

Me dá 30 segundos?


Autores reconhecidos, a quem eu admiro, deram remédio equivocado depois do correto diagnóstico.

Em um livro sobre apologética, a tal ciência que busca limpar os obstáculos do caminho até a fé, eles disseram que as pessoas não têm mais tempo para ouvir o que você tem a dizer. Isso, em tese, cria então um empecilho importante na tarefa de compartilhar as boas notícias da vida em Cristo.

Qual a solução? Ensinam que deveríamos aprender a resumir a excelente notícia em 30 segundos. Faz aí: diz em 5 minutos, reduz pra 2, resume em 1 e, quem sabe, estará preparado para o desafio final de anunciar a grande mensagem de salvação em menos tempo do que você leva (ou deveria levar...) para escovar os seus dentes.

É quase como se a sujeirinha que alimenta as bactérias que escavam meu esmalte dental merecessem mais atenção e tempo do que ouvir e dialogar com o interlocutor com quem compartilho minhas crenças mais íntimas.

Injusta e cruel interpretação do que queriam dizer? Talvez sim. Além do mais, sempre poderá ser um bom exercício esse de saber sintetizar e trazer até a essência o que alguém crê. Talvez até mesmo precisemos mais dessa saudável disciplina de eliminar o que é penduricalho e chegar a dizer em síntese o que é essencial em nossa fé.

Mas ainda sim, confesso, isso provoca em mim um grande incômodo. Não estaríamos diante da situação em que é preciso ser contra-cultural, desafiar o ethos da indiferença, do individualismo, da suposta falta de tempo e daí cultivar espaços ricos em que nos dediquemos a passar mais tempo uns com os outros, para conhecimento mútuo, convidando então esses “outros” a que entrem em nossa intimidade, resgatando a hospitalidade e o compartilhar da mesa?

Não se poderia assim atuar contra a cultura de nossa época e encontrar algo mais do que meio minuto para dialogar a respeito da fé que salva?

Penso que meu tempo se acabou. Faz o seguinte. Vem aqui em casa para que tomemos juntos um bom café ou o acertado e amargo mate uruguaio. Quem sabe não seja um bom começo? Só uma condição, terá que ficar mais do que 30 segundos...

Foto: © Percezioni spazio-temporali / Spatiotemporal perceptions

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06 fevereiro 2009

Ainda com os livros: idéias de leitura para 2009

Compartilho brevemente aqui algumas idéias de leitura para esse início de 2009.

Missão Transformadora
David Bosch

Depois de mais de 10 anos após ler alguns capítulos quando estudava no All Nations, creio que chegou a hora de lê-lo por inteiro e com calma.

Orientales
Una Historia Política Del Uruguay
1. De los orígenes a 1865

Lincoln Maiztegui Casas
Há que entender melhor o novo lar.

Protestantismo en el Uruguay
J. A. Piquinela
Entendendo melhor - II

La daga
Philip Pullman
Relax, e ponto.

O diabo e outras histórias
Liev Tólstoi.
Quando um autor tem que ser lido...

Reflections on Psalms
C.S.Lewis
Pela mesma razão do anterior, mas o digo sob a suspeição de ser fã.

Ética e Política
Una mirada desde C. S. Lewis
Manfred Svensson
Idem.

Entrevista sobre el siglo XXI
Eric J. Hobsbawn
No momento, levo-o na mochila. Pequena, mas imperdível leitura.

Miedo líquido
La sociedad contemporánea y sus temores
Zygmunt Bauman

Vidas Desperdiciadas
La modernidad y sus parias
Zygmunt Bauman
Comentei aqui porque valia a pena voltar a esse excelente autor.

Separei outros, mas como estou em viagem, não tenho a lista agora. Depois posso compartilhar a lista estendida. É claro, repito, ela pode e deve ser melhorada com suas sugestões.



16 janeiro 2009

Retrospectiva 2008: os melhores livros


Seguindo no assunto de livros, aproveito para fazer aqui uma lista do que foram as melhores leituras de 2008.

Greenspan
Alan Greenspan, Wall Street y la economia mundial
Bob Woodward
Uma interessante biografia que por acaso caiu em minhas mãos (oferta de livraria de bairro) pouco antes que a crise financeira ficasse mais evidente, no segundo semestre do ano. Foi quase divertido ler a advertência de Greenspan para que o mercado não interviesse no crash de 1987, porque segundo ele tal intervenção faria com que todo o sistema tomasse rumos imprevisíveis. O que dizer agora sobre o que pode acontecer com a gigantesca intervenção na economia de tantos governos, inclusive (e talvez principalmente) dos EUA?
(versões em Português e em Inglês)

Estados Fallidos
El abuso del poder y el ataque a la democracia
Noam Chomsky
Polêmico, bombástico, revelador, um profeta incômodo. Pode-se não concordar com tudo, mas difícil ficar indiferente. Uma leitura necessária para tentar entender o mundo em que vivemos.
( versão em Inglês)

Amor líquido
Acerca de la fragilidad de los vínculos humanos
Zygmunt Bauman
Comentei algo aqui sobre sua leitura. Não é fácil encontrar alguém hoje que expresse melhor o abismo de nossas angústias, sem ser totalmente pessimista. Há esperança nos escritos de Bauman, e é isso (entre outras coisas) que me levará a ler outras obras dele.
(versão em Inglês e em Português)

Las Viudas Rojas
Esteban Valenti
Escrita por um italiano radicado em Montevidéu já há algumas décadas, essa ficção te agarra e te leva por um divertido passeio de espionagem, intriga e humor, por entre os dilemas de uma geração que ficou no meio do caminho, abandonada pelo decreto do fim da utopia do socialismo real.

La Brújula Dorada
Philip Pullman
Já resenhei aqui e apenas acrescento o seguinte: para quem gosta do gênero, é muito melhor escrito e muito mais provocador do que Harry Potter. Ainda estou em dívida com as sequências: “La Daga” e “El Catalejo Lacado”.
(versões em Inglês e em Português)

Exploring Protestant Traditions
An invitation to theological hospitality
W. David Buschart
Não sei recomendar um livro melhor que esse para poder entender, sem estereótipos simplistas ou julgamentos rápidos, as diferentes tradições protestantes. É um daqueles livros indispensáveis para quem trabalha em ministérios interdenominacionais.

C. Stacey Woods and the Evangelical Rediscovery of the University
A. Donald MacLeod
Foi o mais sublinhado e rabiscado do ano! O melhor livro que já tive em mãos para entender a fundo a história da IFES (era esse o propósito?), em especial nos relatos das “entrelinhas”, em um fabuloso e bem honesto trabalho levado a cabo por esse excelente professor de história. Quando uma vez eu tive o privilégio de ser levado pelo Donald a um aeroporto, infelizmente eu ainda não tinha lido o livro. Uma pena, pois um pneu furado ou um vôo perdido abririam a chance de muitas perguntas e creio que uma frutífera conversa sobre seus escritos.

The Message of Samuel
Mary J. Evans
Essa excelente, profunda, mas acessível exposição do texto me fez desejar uma coisa. Se um dia Deus me chamar a escrever algo, depois de uma séria investigação bíblica, gostaria de escrever como a Mary.

Para 2009, tenho minha lista de pendências de leituras. Mas ela pode ser enriquecida com suas sugestões. Antecipadamente, agradeço.

Foto: © (07-11-24) 2:32
Upload feito originalmente por Shefaet

05 janeiro 2009

O livro do ano



A história me interessava já há um tempo. Creio que o interesse cresceu depois de haver conhecido a Roberto Canessa, o médico cardiologista infantil que realizou a façanha, junto a seu amigo Nando Parrado, da expedição final que levou 10 dias para escapar da tumba dos Andes.

Ganhei o livro “La Sociedad de La Nieve”, recém-publicado, em que pela primeira vez aparece o testemunho de todos os 16 sobreviventes, 36 anos depois do acidente, entremeados com o emocionante relato dos acontecimentos, feito pelo escritor e jornalista Pablo Vierci. Pablo, o narrador, também foi um amigo de infância dos protagonistas do livro.

E de amizades parece falar esse livro que me transbordou. De certo modo, isso parece uma ironia e um paradoxo. As reações mais comuns, como as que sucederam em especial nos momentos logo após o resgate, parecem ser as de assombro pelo fato de que sobreviveram por haverem comido os corpos de seus companheiros que não resistiram à tragédia.

Mas de alguma maneira, os vínculos que se criaram entre eles, inclusive com a memória dos amigos e com alguns parentes dos falecidos, foi o que mais impacto me causou. Lá em cima, em meio à desesperança, sofrimento e morte, brotavam os sentimentos e, principalmente, as atitudes mais sublimes de cuidado com o mais frágil, de sacrifício e de doação.

Terminei de ler o livro hoje, lembrando-me do saudoso Dr. Ross Alan Douglas, pioneiro da ABU no Brasil e dono da mais vasta biblioteca pessoal que já conheci. Em meio a uma daquelas reuniões de diretoria que já começavam a entediar-lo, ele abria um livro e começava a folhear-lo sem cerimônias.

Os outros 9 ou 10 presentes faziam que nem notavam e respeitavam a “liberdade acadêmica” de nosso saudoso mestre. Numa dessas ocasiões, ainda em meio a uma discussão orçamentária, ele com prazer a ignorou e mostrou-me um interessante livro que lia sobre epistemologia, ciência e fé.

Já que tinha o aval do doutor, embarquei na conversa e em algum momento lhe perguntei se já havia terminado de ler o livro. Ele me fitou debaixo de suas grossas lentes, confessou que raras vezes lia um livro até seu final e tremeu seu corpanzil em uma gostosa risada.

Entre decepcionado e cético com o mito que eu havia construído, ouvia então sua convincente explicação de que poucos livros mereciam ser lidos por inteiro.

Ironicamente comecei a ler o “La Sociedad de La Nieve” em uma viagem de avião. Nas sete horas que separam Montevidéu do Panamá, fui algumas vezes obrigado a interromper a leitura. Lágrimas insistentes não me permitiam seguir. Na verdade, não sabia bem o porquê de minha reação.

Só agora, chegando à última página desse fabuloso relato, venho a entender melhor o que eu processava. Isso se deu quando cheguei, no final do livro, ao registro de uma reunião na casa de Canessa, essa que tive o privilégio de conhecer. E aqui me reservo a não dar mais detalhes. Se você se animar, leia. Pode ser que siga sem me entender. Tudo bem. Talvez essa seja uma cordilheira que você mesmo terá que atravessar, do seu jeito, e se você quiser.

Obrigado, caro Dr. Douglas. Esse é um daqueles livros, com certeza.


Foto: © Realtà Sottili
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BeneToZi