30 novembro 2007

Diga-me onde moras... 2



Abrimos a porta ao mesmo tempo. Do outro lado do hall, o sorriso largo do vizinho me cumprimentou.

Don Héctor, exclamei.

— Como passas, Ricardo? Sabes que li teu último post no blog?

Don Héctor é um tipo deveras simpático. Grisalho, sempre impecável em seu alinhado terno. Costuma esperar ansioso pelos domingos de sol para desfilar com sua senhora em sua beleza de moto pela rambla* montevideana.

Hoje ele me surpreendeu. Não tinha o que lhe dizer. Como ele sabia que eu escrevia em um blog? Não há mais privacidade nessa vida?

— Interessante isso sobre o lugar em que a gente mora... — prosseguiu.

Esse negócio de Internet é algo mesmo muito devassado. Ele havia lido de verdade! Que disparate! É só colocar na rede que qualquer um acha. Não que meu amigo fosse qualquer um, muito pelo contrário.

— Você não acha que a gente vive bem confortável aqui? — interrompeu meus devaneios.

Estava confuso, intimidado. Olhei para a escada, mas logo desanimei. Dez pisos, mais dois até o subsolo...

— Penso que foi um bom ponto, mas tenho minhas dúvidas — continuou.

Por que o elevador demorava tanto a chegar? Logo hoje? Não que Don Héctor fosse alguém desagradável. Longe disso! É que eu me incomodava por não conseguir concatenar 2 palavras na “conversa”.

— Um tipo pode morar bem, o outro morar mal, mas o dado mais importante para mim é o da perspectiva e da visão da realidade — filosofou.

Os dois apitos agudos avisaram que o elevador havia chegado. Suspirei quase aliviado. Durou pouco. Quando a porta se fechou, foi como se houvesse ganhado nova força em seu argumento. Inclinou a cabeça, pôs uma mão em meu ombro, e vibrando o dedo indicador da outra a uma distância não muito segura do meu nariz, continuou.

— O que mais me chamou a atenção na história foi a maneira positiva com que a "geografia da pobreza" ajudou a Maria a ter uma abordagem distinta, integral em sua missão, ainda que sua teologia apontasse em outra direção.

Por que nunca havia discutido teologia com don Héctor? Por que o mostrador passava os números dos andares em câmera lenta?

— E o Carlos, ora, o Carlos para mim é o seguinte.

Apertou meu ombro. Encolhi um pouco.

— Para mim não adianta discurso e retórica, quando meus olhos não vêem e meu nariz não cheira, sabe?

Sabia é que nunca havia demorado tanto para chegar ao térreo. Seria minha salvação. Lá ele descia.

— A geografia não determina quem sou!

Será que eu disse isso? Olha, já vai passando no 4.

— Mas que ela influencia, ah, isso sim, influencia. Se isso me servir de alerta, ótimo, agradeço o seu alerta.

Era pra alertar alguém? Já está no 2.

— Não quero ficar condicionado à minha geografia, cultura ou educação!

Um, chegou! Ia saindo, voltou, barrou a porta e quase me desafiou:

— Se a gente se recolhe ao no nosso mundinho confortável, aqui, bem aqui, a gente encalha, a gente encolhe, fica míope. Não sente, não vê, não age para mudar o mundo lá fora.

Acho que fiz que sim com a cabeça, nem sabia que queria mudar tanta coisa...

— Nos vemos na próxima!

“Tá”, disse meio pra dentro. Desci ao subsolo. Falar o quê? Não sei bem o que dizer na “próxima”. Acho que vou convidar meu vizinho pra escrever no blog.

* avenida costeira

Foto: Ascensor
Upload feito originalmente por Mor (bcnbits)

26 novembro 2007

Diga-me onde moras...


Morning Sunrise
Upload feito originalmente por Riso&Akko
Dois alunos na mesma classe. O tema, ética transcultural.

Maria havia dedicado sua vida como missionária na África. Inteligente e vibrante na defesa de suas idéias, seria no jargão teológico identificada e definida como "conservadora". Agressivamente defendia a idéia de que o evangelismo verbal era prioritário e que ética social não era parte integral do evangelho.

A mesma Maria gastou sua vida morando entre os mais necessitados e lutando por seu bem-estar. Abriu mão de suas posses, ajudou as pessoas a terem acesso à água limpa, organizou-os para que resistissem às tentativas do governo de tomar suas terras, ensinou-os a ler e defendeu o orgulho que deveriam ter por sua cultura tradicional. Por longos anos Maria viveu numa choça com piso de chão batido.

Carlos era um marxista cristão no mesmo curso. Sentava-se ao lado de Maria. Nos debates entre os alunos, Carlos se mostrava um apaixonado defensor da justiça social. Era inevitável que várias vezes suas idéias se chocassem com as de sua companheira de classe. As notas dessas discussões ele as escrevia com uma caneta cujo preço era maior que o orçamento mensal de Maria. Carlos trabalhava para o
Bank of America e vivia em um confortável apartamento em uma próspera zona da cidade.

O professor, que compartilhava as idéias de Carlos quanto à missão integral, passou a admirar cada vez mais a Maria. Ele passou a lembrar-se das três regras de ouro dos agentes imobiliários: “localização, localização, localização”. E pensava no quanto a nossa geografia influencia nossa teologia e missiologia. Não apenas em retórica, mas em integridade de vida e ação concreta.

Nesse dia, nosso mestre deixou a faculdade pensando que “o primeiro passo para alguém preocupado em justiça social talvez seja o mudar-se de casa”.


[Essa breve reflexão baseia-se livremente na história relatada por Bernard Adeney-Risakotta em seu excelente livro Strange Virtues, ethics in a multicultural world, IVP (p. 226). Os nomes Maria e Carlos são fictícios.
Bernard, o nosso professor na historieta acima, é filho do brillhante missionário inglês David Howard Adeney, que atuou com a China Inland Mission, OMF e IFES. David foi exemplo e inspiração para gerações de líderes na obra estudantil em todo o mundo, mas em especial no extremo oriente, até sua morte em 1994.

Bernard
vive hoje em Yogyakarta, Indonesia, onde é Diretor Assistente do Programa de Graduação da Universitas Kristen Satya Wacana]


Foto: Morning Sunrise
Upload feito originalmente por Riso&Akko

23 novembro 2007

Precisamos de heróis, Roberto

Logo estacionamos em frente à sua casa. Obviamente eu estava ansioso, e grato pela oportunidade de conhecer a Roberto. Fomos com um grupo de estudantes, graças a uma impagável gentileza de nosso anfitrião.

Trinta e cinco anos atrás, esse simpático médico cardiologista foi um dos sobreviventes do avião bimotor Fairchild F-227 da Força Aérea Uruguaia que caiu no meio dos Andes. O filme "Vivos" de Frank Marshall (1993) retomou um interesse pela história, que ainda fascina 35 anos depois do ocorrido.

Eram 45 ao todo, em sua maioria jovens jogadores de rugby do Old Christians Club. Morreram 16 no dia do acidente. Outros tantos não resistiram os ferimentos, a fome, o frio e as avalanches. Foram 16 os que sobreviveram aos 72 dias de isolamento na montanha.

Depois de ouvirem pelo rádio que as buscas haviam se encerrado, e depois de várias tentativas de escapar da prisão de gelo, três deles partiram para o que seria a derradeira missão em busca de ajuda. Um deles regressou ao acampamento e Roberto Canessa foi um dos dois que seguiu adiante. Após 10 dias de extenuante jornada encontraram o tropeiro chileno que os levou de volta à civilização.

Entramos, nos sentamos em silêncio, meio constrangidos. Na estante uma foto dos sobreviventes na neve. Na poltrona, sentada à minha frente estava sua velha mãe, atenta à história que seu filho contava pela enésima vez.

Roberto foi nos desvelando algo do drama com uma honestidade e simplicidade que me surpreenderam. Tomei coragem e lhe perguntei qual havia sido o momento mais difícil. Rápido devolveu “ah, foi depois do deslizamento”, fazendo menção à avalanche que os atingiu 16 dias depois do acidente. Mais oito companheiros morreram nesse dia. Parecia que qualquer esperança se esvaíra junto.

Queria lhe perguntar também qual havia sido seu momento de maior esperança, mas hesitei e não consegui. Na verdade, a pergunta se tornou desnecessária. Quando ele nos relatava as agruras da fuga das montanhas, contou-nos como foi do cansaço e desespero a uma experiência de renascimento da fé. Numa noite, ao entrar em seu saco de dormir, costurado com o isolante térmico da fuselagem do avião, viu uma lua gigantesca surgir por detrás da montanha. Também identificou as Três Marias. E pensou, “isso é o mesmo que vejo em casa, a casa onde eu quero chegar e para chegar lá eu preciso continuar nesse caminho”.

Suas muitas menções a Deus provocaram a pergunta de uma estudante, “se você não cresse em Deus, pensa que teria sobrevivido?”. “Não sei, pergunte isso a Ele. Quanto a mim, penso que não crer em Deus é um ato de grande soberba”.

Hora de ir. No jardim, ele me diz “incrível como essa história chama tanto a atenção”. Precisamos de heróis, Roberto. Hoje quisemos que você cumprisse esse papel. Vou embora pensando se talvez não devêssemos lhe pedir desculpas por isso.

Foto: © Copyright Viven 2007

20 novembro 2007

Visões laicas


Você já deve saber que o Uruguai é um país laico. O que muitos não sabem é que esse é um processo que remonta à gênese da identidade do país, no final do século XIX e início do século XX.

Essa gestação da identidade nacional ocorreu não sem tensões e lutas, na administração de cemitérios e hospitais, na educação e registro civil, na formação das leis do país (uma lei aprovando o divórcio, considerando a vontade da mulher ao pedí-lo, data de 1907!) e em confrontações públicas, às vezes hilárias, se não fossem desrespeitosas...

Na década de 20 do século passado, anúncios colocados nos principais jornais do país convidavam a população a churrascos grátis, ao ar livre. O detalhe geográfico e temporal impressiona. A carne era assada na praça em frente à catedral, justo na sexta-feira santa. A fumaça da gordura racionalista da época penetrava nos vãos do templo barroco e enlouquecia igualmente a clérigos e ovelhas (aquelas ironicamente chamadas pela igreja de “leigos”, do latim
laicu, numa triste e irônica coincidência…ou não…).

Atrás das churrasqueiras estava uma elite intelectual e política que bebeu em sua formação do liberalismo e positivismo francês, além da maçonaria, e que estava em aberta luta contra o poder da Igreja Romana. Histórias interessantes às quais voltarei em momento oportuno.

Por agora, queria lhe deixar um excerto do saudoso Norberto Bobbio a respeito da diferença entre uma visão religiosa do mundo e da história, distinta de uma visão de mundo laica. Que seriam essas visões laicas da realidade? Para conhecer o outro, nada melhor do que deixar ele mesmo se apresentar e falar de si. Deixo-lhe então com o Norberto. Desculpe-me o texto longo. Como da
última vez você desligou a máquina e descansou os olhos, imagino que deva estar mais disposto agora. Boa leitura e até a próxima!

“Para dizer a verdade, mais que de uma ética laica, deveríamos falar de uma visão laica do mundo e da história, distinta de uma visão religiosa. Pode-se também falar, com uma linguagem compreensível por todos, de distinção entre uma concepção sagrada e uma concepção profana ou desconsagrada, ou ainda, como se prefere dizer hoje, dessacralizada do mundo e da história, distinção que teria tido sua origem no início da era moderna, no período weberianamente chamado de ‘desencantamento’.

Segundo o cristão, ao lado da história profana existe uma história sagrada, da qual o único guia seguro é a Igreja ou as diversas igrejas que retiram sua inspiração das Sagradas Escrituras.

Para o laico, a história é uma só, e é a história em que estamos imersos, com nossas dúvidas não resolvidas e com as nossas questões inelimináveis, cujo guia é a nossa razão, de modo algum infalível, que extrai da experiência os dados a partir dos quais se pode refletir.

Esta é uma história por detrás da qual e acima da qual não há nenhuma outra história da qual esta nossa história seria apenas uma prefiguração imperfeita, um reflexo infiel ou mesmo enganoso.

Na visão do laico, falta a dimensão da esperança em um resgate final, em uma redenção, em uma palingênese, numa palavra, na salvação. Não pode haver salvação numa visão do mundo em que não existe sequer a idéia de uma culpa originária, que teria maculado para sempre toda a humanidade desde a origem e ao longo dos séculos.

Para o laico, a história não se desenrola segundo um percurso predeterminado, e já traçado desde o início, entre uma culpa original e uma redenção final. É uma história de eventos de que se pode, ainda que nem sempre, encontrar a concatenação das causas, mas em que não se pode chegar à atribuição de culpas.

É uma história da qual é inútil procurar um sentido último, porque um sentido último não existe ou ainda não se revelou de modo claro o suficiente para nos levar à aprovação.”

Norberto Bobbio, em Elogio da serenidade e outros escritos morais, UNESP, 2002.

Foto: Palácio Legislativo, Montevidéu- Legislación
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16 novembro 2007

Que tal ler um livro?


Desligue o computador e vá ler um livro. Mas não um qualquer. Busque um que tenha uma visão de mundo distinta da sua.

Todos nós, fundamentalistas, ecumênicos, conservadores e liberais, demasiadas vezes caímos na mesma tentação. A de ler apenas o que nos convém, o que nos agrada e que reforça o que já acreditamos.

Quando incorro nesse pecado, giro ao redor de meu eixo e não desenvolvo aquela capacidade de enxergar além. Esse olhar que me leva não apenas a alargar a fronteira da compreensão, mas também a voltar com uma percepção renovada (revisada?) e quiçá mais autêntica de quem eu sou.

Momento para uma digressão. Convém lembrar que há algo fundamental acerca do prazer na leitura. Parece que foi o Borges (não eu, o outro, o Jorge Luis) quem defendia a idéia de não ler um clássico somente por ser um clássico. Se a experiência é frustrante, dizia ele, feche o livro sem culpa.

Meu homônimo tem razão, em especial quanto às novelas, os contos e as poesias. Ainda assim penso no benefício de ler aquilo que me é diferente, mesmo ou em especial o que não me agrada. Examinar idéias e cosmovisões alheias, que me provocam e desafiam.

Compartilho uma mui humilde lição de casa à qual me dedico no momento, lendo o aclarador “Exploring Protestant Traditions, an invitation to theological hospitality”, de W. David Buschart (IVP, 2006). Uma rica ainda que concisa jornada pelas tradições reformada, luterana, wesleyana, anglicana, anabatista, pentecostal e dispensacionalista. De cada uma o autor se acerca de sua história, contexto eclesiástico, suas ênfases hermenêuticas e teológicas.

Sua leitura tem me ajudado a construir pontes de entendimento e cooperação, necessárias em um mundo evangélico tão fracionado. O óbvio, confesso, é que esse exemplo é tímido, pois ainda é leitura dentro de um escopo circunscrito de tradições. Talvez seja apenas um bom passo, um começo que me socorra no plano estreito de minhas idéias.

Penso que quem quer viver e servir em outra cultura tem que aprender a ler as vozes dos novos “atores” que conhece, os mestres, os que formam e desinformam, os amigos, vizinhos ou inimigos. Os que são a favor ou muito pelo contrário. Suas razões e também incoerências. Os que me ensinam e também agregando minha própria disposição de adicionar ao caldo minhas reações e percepções, com santa abertura para repartir tudo o que de precioso eu possa trazer a essa conversa.

Se você leu até aqui é porque não acatou a sugestão da primeira frase. Talvez o faça agora. Apague a máquina e agarre um bom livro. Nos vemos na próxima.

Foto: Leggendo
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14 novembro 2007

O que o prazo de validade uniu...



A quantidade de divórcios aumentou 80% nos últimos 10 anos aqui no Uruguai. Mais da metade dos que se casam a cada ano se divorciam algum tempo depois.

Um psicólogo da terra, Gustavo Ekroth, anda defendendo que a durabilidade de um casamento se sustenta em quatro pilares: atração sexual, amizade, admiração e projetos em comum.

Ele ainda sustenta(1) a curiosa teoria de que o matrimônio deveria ser um contrato com prazo de validade, que se pode renovar, ou não, conforme o desejarem. Para ele, “ainda que agora estejam bem, não têm porque ser assim a vida inteira; assim deixariam de prometer no altar coisas que terminem sendo uma mentira”.

Já imagino a cena. O conselheiro no curso de noivos lhes pergunta “por que só um ano, não querem logo partir para três?”. Ou, ao revés, “acho dez anos muito arriscado; vamos colocar cinco e ver como anda o negócio?”.

Pensando bem, se esse papo de compromisso e permanência já não manda tanto, proponho que radicalizemos.

Criemos um novo sistema de avaliação diária do casal! Por meio de pontuação, e cores que nos auxiliem já que nossa inteligência emocional não anda lá essas coisas.

Acima de 7, cartão verde, passou. Entre 4 e 6, dá-lhe um cartão amarelo. O imbróglio é feio, demanda convocar uma reunião urgente para recompor as metas. Abaixo de 4 não dá. Segue um cartão vermelho junto com o singelo texto “dessa vez não deu, procure outra” (ou outro, sei lá).

Para evitar indelicadezas, nada de mostrar a nota e o cartão assim, cru, na cara do outro. Deixemos discretamente a avaliação de nosso companheiro sobre o criado-mudo, a cada manhã ou noite, como lhes convier.

Outro dia passei pelo “mudinho” e, para minha surpresa, havia um 10. Cartão lindo, novinho, nunca antes usado…. Emocionei-me, fui às nuvens. Devo ser como o vinho, conjeturei. Melhoro a cada ano que passa.

Abrupto minha amada esposa irrompe, de um peteleco vira a nota a um 7, enquanto diz “já falei pras crianças não mexerem aqui…”.

Quase acho que foi algo premeditado (vislumbrei o esboço de um sorriso maroto), se bem que nem ligo, até gostei do 7... Mas ainda confesso que tenho saudades dos tempos em que o “só a morte nos separará” já era suficiente.

1 Em “Hasta aquí llegamos”, El Observador, 10/11/2007

(Foto: © Lised Márquez)

12 novembro 2007

Carroças 2... Ainda sobre os "hurgadores"

“Espetáculo próprio dos tempos de colônia!” Assim leio em editoriais de jornais prósperos e conservadores do país, referindo-se à mesma temática do artigo anterior: os hurgadores, ou aqueles que procuram com afinco sua subsistência em meio ao lixo.

Ouço queixas acerca da falta de sinalização das carroças, dos maus-tratos aos animais, da suposta sujeira que fazem (eu pensei que eles ajudavam a diminuir o lixo, e não o contrário), do perigo no trânsito e alguns ainda apontam para a suposta ameaça inerente daqueles “outros” que remexem nosso sagrado lixo bem ali, em frente de nossas casas.

Dizem que há 8 vezes mais desses trabalhadores aqui em Montevidéu do que a média dos que se encontram em outras cidades latino-americanas.

Eu estaria longe de defender um ofício tão pouco nobre. Gostaria que fosse abolido. Desejaria que os condutores desses veículos eqüestres, muitas vezes crianças, estivessem aproveitando sua infância e adolescência de modo mais lúdico e salutar.

Mas fingir que o problema não existe ou estigmatizar quem mais sofre com essa condição não irá nos ajudar.

Uma sociedade que seja socialmente fracionada entre “nós” e os “outros” (diga-se que no Brasil o abismo infelizmente é bem maior) não possui bons prospectos para o futuro.

Falar de futuro nos remete à idéia de esperança. Tenho uma, que ainda busco alimentar. A de que o evangelho de Cristo transforme perspectivas, atitudes e políticas públicas que gerem um mundo com abismos menores e o fim de certas ocupações, que na verdade nunca deveriam ter existido.

Seria um bom começo ver esse tema sendo abordado no sermão do próximo domingo.

(Foto: © Tali KF)

11 novembro 2007

Crianças da carroça

“No te enojes! No te enojes!”. Ele a agradecia, sem lhe olhar nos olhos, repetindo essa frase que a princípio Ruth não conseguia entender.

Voltávamos à casa depois da festa de nossa filha e minha esposa resolveu entregar alguns excedentes ao “hurgador” que passava por aí.

“Hurgadores”, do verbo “hurgar”, que quer dizer “revirar, inspecionar, procurar com afinco”. Aqui, na capital do país, é cena comum cruzar com a carroça de um hurgador, muitas vezes acompanhado de menores de idade, que mais facilmente entram nos contêineres verdes onde os sacos de lixo doméstico são depositados. Há um desses recipientes em cada quadra. Buscam de tudo o que se possa aproveitar.

Diferentes estimativas dizem que há entre 5 e 10 mil hurgadores em Montevidéu. Talvez mais de 20 mil pessoas dependam economicamente dos que “procuram com afinco” no lixo.

No começo, Ruth não entendeu o que ele quis dizer. Depois caiu a ficha. Como ele havia pedido se ela também tinha alguma roupa de criança que pudesse lhe prover, ele teve medo e lhe pediu desculpas à maneira em que, traduzido livremente, seria “não se chateie ou se incomode comigo”.

Como não me incomodar com a pobreza, com a fome, com a necessidade absoluta?

Montevidéu aparece hoje em manuais de “missão” com especial destaque para a chamada área menos alcançada com o evangelho, talvez de todas as Américas. Desde Punta Carretas até Carrasco, passando pelo bairro judeu de Pocitos (mistura de Copacabana-Leme-Leblon), concentra-se a população mais rica do país, com uma quantidade ínfima de igrejas evangélicas ou supostamente de cristãos espalhados por essa zona.

Uma boa quantidade de recursos das “missões evangélicas” é mobilizada para essa área. Novos missionários, especialmente de países mais ricos, com recursos para manter projetos nessa vizinhança, vão aos poucos sendo atraídos para a região.

Os resultados ainda são tímidos. Há que investir mais. Os ricos também sofrem, têm carências, também precisam de salvação.

O pobre hurgador segue seu caminho. Quase culpado por nos incomodar com seus pedidos e necessidades.

Fico aqui pensando se Deus não pensa em pregar uma peça na laica e culta sociedade uruguaia. Já pensou se ele usa esses homens, mulheres e crianças da carroça para revolucionar esse país com o evangelho de Cristo?

Eu não me “incomodaria”. Continuo “procurando com afinco” uma melhor explicação para nossos preconceitos e estratégias missionárias.

(Foto: © Ivon Ruiz)

08 novembro 2007

Parabéns, do Mario

Foi um encontro inesperado. Justo naquele dia em que celebro a certeza dos anos que já passaram e o incerto dos que virão.

Ele moveu-se ligeiro da esquina da estante direto ao sofá da sala. Resolvi papear. Na verdade, mais ouvir do que falar.

Em uma tacada ele me disse, “Feliz Aniversário”. Levantei os olhos incrédulo. Como ele sabia?

Mario é desses personagens controversos e apaixonantes. Criticado por seus vínculos com a esquerda radical (qual esquerda de verdade não o é, para o bem e para o mal?), sempre foi habilidoso como poucos, bem poucos, com a pena na mão. Digo “pena”, confesso a malvadez, por causa de seu longo percurso.

Quatro anos depois que a I Guerra Mundial acabara (não faça as contas, que é deselegante, o Mario pode se chatear) nascia o homem em Paso de los Toros, Uruguai. Lido e apreciado pela juventude de numerosos rincões. Viveu 60 anos com o amor de sua vida, Luz López Alegre, que partiu não faz muito. Não quero parecer desrespeitoso, mas como poderiam ser infelizes no matrimônio com esse nome?

Deixemos atrás o devanear e voltemos à sala, cenário do colóquio. O Mario, ao me felicitar, foi desusado e me falou da morte. Logo hoje? Narrou-me seus dilemas, angústias, suas indagações sem resposta.

Ao fim, depois daquela pausa que os poetas sabem fazer (às vezes eu tento arremedar, mas fica apenas parecendo que observo a sujeira da parede, que cochilei ou engasguei…), concluiu que ao menos sente algum consolo em seguir perguntando.

Eu me calei. Razão simples. Se eu não conseguir ouvir as perguntas que ele me faz (boas questões formula o tipo) nunca poderei ambicionar qualquer resposta.

Sabe dar bom presentes esse Mario. Veja o que ele me regalou.

Happy Birthday

¿Cómo será el mundo cuando no pueda yo mirarlo
ni escucharlo ni tocarlo ni olerlo ni gustarlo?
¿cómo serán los demás sin este servidor?
¿o existirán tal como yo existo
sin los demás que se me fueron?
sin embargo
¿por qué algunos de éstos son una foto en sepia
y otros una nube en los ojos
y otros la mano de mi brazo?
¿cómo seremos todos sin nosotros?
¿qué color qué ruidos qué piel suave qué sabor
qué aroma
tendrá el ben(mal)dito mundo?
¿qué sentido tendrá llegar a ser protagonista del
silencio?
¿vanguardia del olvido?
¿qué será del amor y el sol de las once
y el crepúsculo triste sin causa valedera?
¿o acaso estas preguntas son las mismas
cada vez que alguien llegue a los sesenta?

ya sabemos cómo es sin las respuestas
mas ¿cómo será el mundo sin las preguntas?

Happy Birthday em Inventario Uno, Editorial Sudamericana, © 1995 Mario Benedetti
Agarrei o livro do Mario e me deparei súbito com esse poema, logo quando celebrava meu natalício.

(Foto: do Mario, claro - © Copyright 1996-2000 Clarin.com)

05 novembro 2007

Mãos que trabalham também descansam?

“Você se lembra de nossa última conversa?” Não, não era razoável que pudesse recordar. Eu era uns tantos quilos mais novo, estava por sair da universidade. Fazem exatos 15 anos.

Voltei a ver o Sr. Jacques Beney em um recente ajuntamento mundial da IFES. Não o havia visto durante todo esse tempo. Logo o reconheci, e decidi revelar-lhe como havia me abençoado àquela época e, na verdade, desde então.

Contei-lhe como sua dica simples me havia ajudado tanto. Resumindo, ele me ensinou a orar a cada manhã, com as palmas das mãos viradas para cima, recebendo de Deus o chamado que Ele tinha para minha vida, assim como as forças e a sabedoria para cumpri-lo nesse dia.

Antes de dormir deveria voltar a orar, com o mesmo gesto das mãos, dessa vez devolvendo ao Senhor o chamado, que é dEle, e assim entregando tudo em suas mãos, para que pudesse dormir em paz.

Disciplina e gesto tão simples, mas reveladores de uma profunda verdade. Tudo o que faço na vida deve beber dessa fonte que é o chamado de nosso Deus. E preciso saber descansar, recordando-me sempre que o trabalho é dEle, e que não me cabe a última palavra ou responsabilidade.

Meu caro amigo suíço Sr. Jacques, devo lhe dizer que fui desobediente algumas vezes. Já abracei causas e preocupações como se fossem somente minhas. De um modo que, pensava eu, o fim do mundo pronto chegaria por minha ação ou omissão. Pura tolice. E arrogância.

Minhas mãos aos poucos delatam as marcas da lide diária. Elas sofrem mais quando não as estendo pelas manhãs e ao deitar-me. Mãos que laboram precisam descansar. E elas o farão quando aprenderem a receber, e a entregar.

Descanse feliz, minha cara mão.

(Foto: © Hercules Milas)