21 dezembro 2012

Quatro lições do Natal


Numero Quatro
Upload feito originalmente por beckycaplice
Cada celebração do nascimento de Jesus nos renova a oportunidade de aprender ou reaprender algo sobre o evento que transformou a história. Pensemos rápido sobre quatro elementos desse acontecimento e que lições nos ensinam:

1. O Senhor move o que quiser e quem quiser para cumprir os seus propósitos. Com um decreto, César Augusto indicou que todos deveriam se registrar em sua própria cidade (Lc 2.1-5). Assim, uma jovem prestes a se tornar mãe e seu noivo se deslocaram até Belém. As multidões, os impérios e os poderosos que nos governam muitas vezes nos fazem sentir pequenos e impotentes. Mas o personagem maior sempre atua de maneira a inclinar-se em favor do pequenino, movendo as peças para que “cedo ou tarde” seus desígnios se cumpram.

Se isso é verdade então a pergunta é se estamos atentos ao que o Senhor já vem fazendo, para que sejamos agentes privilegiados da sua ação no mundo. Busque ao Senhor e discirna onde ele já vem atuando. Se a ação é dele (em paternidade, iniciativa e controle), então o que me resta fazer é somar-me a ela com espírito humilde e agradecido.

2. O caminho do Senhor nem sempre é o mais fácil nem o mais simples. Vejam que o Senhor que move as autoridades máximas de um império aparentemente não foi capaz de reservar um alojamento para esse casal em Belém (Lc 2.6-7). Perguntamos-nos se não seria possível que movesse o coração do dono de uma estalagem ou que incitasse uma família para que fosse hospitaleira com os pais daquele bebê que viria para mudar o rumo do universo. Claro que seria possível, mas não foi esse o roteiro escolhido pelo grande chefe.

Esse bebê, quando grande, também não transformaria pedras para saciar sua fome com pães, nem daria saltos no vazio para ser acariciado por anjos. Também alertaria os desavisados de que ele não teria lugar para repousar sua cabeça. Que sua vida não seria fácil, que segui-lo tampouco implicaria em regalias e garantias. Pelo contrário, que segui-lo demandaria renúncia e levaria cada um a carregar sua própria cruz. Ele se tornou pobre por amor, para que cada um de nós se tornasse rico (2 Co 8.9), ainda que essa riqueza seja de uma natureza distinta à da nossa percepção comum. A vida nesse caminho não é fácil nem simples, mas assim é melhor, porque se trata de uma riqueza muito mais profunda e verdadeira.

3. Ele veio para que todos tivessem vida. A visita dos magos (que não eram três nem reis) foi surpreendente. Vindos do Oriente, possivelmente eram inesperados mágicos e astrólogos de nações consideradas pagãs. Esta visita antecipou quem se beneficiaria com a chegada do Messias. Não só uma família, nem só um povo, nem mesmo qualquer outro grupo de pessoas criado artificialmente por nossas próprias regras e tradições humanas. Se uma vida especial nascia naquele pequenino, essa vida era desde o princípio ofertada a todas as pessoas, de todos os grupos, de todas as nações.

Foi o próprio evangelho de Mateus, considerado como o evangelho escrito aos judeus, que deixa bem claro no seu início (por meio dos visitantes especiais), e no seu final (com o grande mandato para fazer discípulos em todos os povos), que essa vida era e é um oferecimento a toda a humanidade. Se muitos não a abraçam, talvez a culpa seja daqueles que se pensam exclusivos detentores dessa bênção. Por isso devemos ser vasos conscientes de que o que temos foi porque recebemos. Portanto somos bons mordomos que transbordam a todos os demais algo que não chegamos a ter por merecimento e que nem é “direito” exclusivo nosso.

4. Damos porque assim revelamos onde está nosso tesouro. Foi o Pai quem primeiro deu o seu próprio filho para que assim experimentássemos vida, abundante e eterna. O filho deu o seu tempo, as suas palavras, as suas ações, o seu corpo e o seu sangue... tudo também por amor a nós. Então faz sentido que um dos primeiros acontecimentos após o nascimento fosse também o ato de presentear, vindo daqueles senhores do Oriente que lhe trouxeram ouro, incenso e mirra.

Muito se diz, talvez até demasiado, sobre o significado de cada um dos presentes. Mas prestemos atenção por um momento somente naquele ato de dar. É verdade que Deus não precisa de nossos presentes, como se nossas mãos humanas pudessem dar a ele algo que realmente necessitasse (At 17.25). Não é assim que funciona. Na verdade, Deus não precisa de nada que lhe possamos oferecer. Então por que eles o presentearam e por que isso é registrado por Mateus (2.10-11)?

Parece que quando eles dão algo que lhes parece valioso, o que estão dizendo para o recém-nascido é que ele é o bem mais apreciado. O bebê é o tesouro, e não os bens preciosos que ele recebe. Assim é a nossa adoração a Deus, ou pelo menos assim deveria ser. Dou meu tempo, talentos e recursos, não porque Deus ou pessoas ao meu redor deles necessitem, mas porque, ao fazê-lo, eu declaro para Deus, para mim mesmo e para todos ao meu redor onde está meu verdadeiro tesouro.

Nesse Natal, onde está o seu tesouro? Ao longo do próximo ano buscarei aplicar essas pequenas lições em minha própria vida. Meus votos são que você também as torne concretas na sua.

19 novembro 2012

Quem sabe se abram os olhos


olhô
Upload feito originalmente por Hugo Chinaglia
Dois episódios, envolvendo ateus, cristãos e muçulmanos, além de um documento escrito por várias mãos. Com isso encerro a breve reflexão sobre o testemunho cristão no mundo, iniciada aqui antes com dois artigos (Entre a cruz e o papa e Missão rima com diálogo). Essa curta série levanta ideias sobre como viver e comunicar bem o evangelho de Cristo no mundo de hoje.

Episódio 1

Terminada a palestra na Universidade Federal de Viçosa, fui abordado por um ávido e gentil grupo de estudantes interessados em dialogar. Faziam parte de uma agrupação autodesignada “Incrédulos”. O primeiro súbito desafio: “Prove que Deus existe!”. Intuí que o caminho deveria ser outro: “Aprecio que tenham essa disposição para ouvir e conversar. Eu não posso lhes ‘provar’ que Deus exista, do mesmo modo como vocês também não poderiam ‘provar’ que não exista. Assim, o que acham de começamos de maneira diferente? Eu lhes falo sobre como cheguei a crer naquilo em que creio hoje, desde minha perspectiva existencial. Mas além de subjetiva, ela é também algo objetivo, porque se trata de uma perspectiva histórica que se constrói a partir de uma visão e compreensão dos fatos. Mas antes eu gostaria de ouvir sobre o que vocês creem ou não creem, ou ao que aderem, e como foi que chegaram às suas conclusões”.

O resultado foi uma boa e longa conversa. No final, quando nos despedíamos, animei-os a continuar lendo e investigando. Mas não somente aquilo que reforçava o que eles já pensavam – um conselho que eu também busco seguir. Então um deles me disse algo assim: “excelente diálogo; espero que voltemos a nos encontrar no futuro; pode ser que você então tenha mudado algo na sua fé como fruto de nossa interação ou que a gente também tenha revisado a nossa posição, quem sabe?”. Fui embora feliz e esperançoso. Aquele “quem sabe”, para mim, já era promissor.

Episódio 2

Minha esposa e eu estávamos, antes de nossas filhas nascerem, estudando teologia na Inglaterra. Durante um trimestre encontrava-se em nosso meio um acadêmico de uma universidade do Oriente Médio, um muçulmano convicto e estudioso das relações inter-religiosas. Depois de um período no Vaticano, sua universidade o havia enviado ali para outra etapa de estudos e observação em um instituto do ramo protestante do cristianismo. Houve debates públicos interessantes, como um com nosso professor árabe cristão sobre violência e fé. Mas o mais fascinante era o diálogo pessoal, à mesa ou logo após o momento em que cada um se dedicava, a seu modo, às orações matinais.

Perto do final de seu tempo de intercâmbio, esse brilhante e devoto estudioso convidou alguns amigos nossos para acompanhá-lo nessa hora de orações. Esses amigos cristãos não compartilhavam aquela mesma devoção do “scholar”, mas respeitosamente o acompanharam e ouviram, para sua surpresa, sua prece a “Allah”: “Abra os olhos de meus amigos para que eles vejam toda a verdade. E se há algo que eu não esteja vendo bem, abra também meus olhos para que eu entenda toda a verdade”. A intercessão pelos olhos abertos, de um ou de outro, foi uma oração que me surpreendeu com esperança.

Um documento

Há pouco recebi um documento através de uma professora que tive, a brasileira Rosalee Velloso Ewell, quem atualmente desempenha a função de diretora executiva da Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial: “O Testemunho Cristão em um Mundo Multi-Religioso”, um texto produzido pela Aliança Evangélica Mundial, o Concílio Mundial de Igrejas e o Vaticano. Me pareceu uma cooperação pouco comum, mas que resultou em um documento relevante para provocar o debate e para resgatar alguns princípios para o diálogo com pessoas de outras crenças. É bem possível (ou mesmo desejável) que não se concorde com tudo o que está escrito aí, mas o fato de que seja possível o diálogo entre diferentes tradições cristãs pode ser um sinal auspicioso do caminho para que com respeito e integridade se possa viver e comunicar melhor o evangelho de Cristo entre aqueles que professam outras religiões ou o ateísmo.

Espero aprender a ouvir, a dialogar, anseio ser coerente e íntegro, na mensagem e na vida. Oro para que sempre meus olhos se abram e “quem sabe” eu consiga revisar em minha atitude e missão o que precise ser mudado ou melhorado. Aprender com a atitude de meus amigos ateus e muçulmanos pode ser um bom começo.

16 outubro 2012

Missão rima com diálogo


Dialogo sui massimi sistemi
Upload feito originalmente por Jack Denny
Terminada a palestra, vejo uma mão levantada no fundo do auditório. Sem saber se a pergunta vinha de um estudante crente, ateu ou agnóstico, ouço ansioso a pergunta. Logo descubro, não sem antes ficar desconcertado ao ouvir: “Você não vai falar sobre a segunda vinda do Senhor Jesus?”

Lancei rápidos olhares ao resto do auditório, buscando rastrear quem mais ali seria do clube dos crentes (aliás, ao qual pertenço) ou quem também estaria ali como eu, meio perdido com a questão. Logo vi um, aparentemente descrente, com uma cara que parecia dizer “como diabos apareceu essa pergunta e o que ela tem a ver com o debate sobre ‘Pluralidade e relativismo’?”. Bem, esse companheiro incrédulo tampouco creria no diabo, mas isso é conversa para outro momento.

Isso aconteceu na universidade pública em La Paz, Bolívia, naquela atividade a que me referi no artigo anterior. Quando tudo terminou, pude conversar pessoalmente com o piedoso estudante da “indagatória”. Ele parecia muito angustiado porque eu não havia pregado sobre a segunda vinda naquela hora e lugar. Sua aparente motivação era seu ardente desejo de que muitos fossem salvos. Quando eu lhe disse que possivelmente muitos não entenderiam a mensagem do evangelho se eu começasse por aí, veio então seu comentário que terminou por desconcertar-me, “é assim mesmo, muitos rejeitarão o evangelho!”.

Recuperado de minha surpresa, lhe disse algo mais ou menos assim: “se estás de fato interessado com a salvação de seus colegas, é melhor que se preocupe com a maneira com que lhes comunica o evangelho de vida em Cristo. Certamente muitos o rejeitarão, mas não devemos nos esconder detrás de uma pobre e imperfeita apresentação do evangelho. Nosso dever é construir pontes, viver e comunicar bem esse evangelho. Com certeza haverá rejeição, mas pelo menos teremos feito a nossa parte e o resto a gente deixa para o Espírito.”

Construir pontes foi o que o apóstolo Paulo fez em muitas ocasiões, mas aqueles que trabalham entre estudantes se maravilham em especial com o que ele fez em Atenas (Atos 17.16-34). Vejam como Paulo lidou com as aparentes barreiras ou obstáculos que encontrou ali: a idolatria, o interesse aparentemente fútil pelas novidades, um santuário meio engraçado no caminho, uma intelectualidade soberba dos atenienses. Em tudo o que poderia ser visto como obstáculos, barreiras, Paulo, ao contrário, viu oportunidades para construir pontes e comunicar o evangelho.

Interessados nas novidades? Conversemos, todos os dias. Idolatria? Que bom que estão em uma busca espiritual. Orgulhosos de seus autores e de suas escolas filosóficas? Também os li e posso comentar a respeito de certos conceitos ou mesmo fazer citações de textos onde acertaram no alvo. Aquele altar por ali? Justo a partir dele lhes explicarei algo bem importante. Ou seja, para Paulo, cada uma das dificuldades era vista como uma oportunidade e um excelente ponto de partida para construir pontes de comunicação.

No final das contas sempre se chega a partes da mensagem em que há desacordos. É natural, algo que se espera em qualquer diálogo honesto. E que nos leva a duas perguntas extras. Primeira: como é que chegamos a esses momentos de confrontação, de que maneira? E a segunda: é possível que essa confrontação seja legitimamente respeitosa?

Quanto à primeira, recordo do livro que li avidamente em minha época de estudante universitário quando eu buscava compartilhar minha fé com meus companheiros. Nessa obra de Dostoiévski, o atormentado personagem de “Memórias do subsolo”, fechado em seu próprio mundo, diz em determinado momento:

“Destruí os meus desejos, apagai os meus ideais, mostrai-me algo melhor, e hei de vos seguir. Direis que talvez não vale a pena mesmo ocupar-se disso; mas, neste caso, posso responder-vos de modo idêntico. Estamos argumentando a sério; mas, se não quiserdes dignar a dirigir-me a vossa atenção, não serei o primeiro a inclinar a cabeça. Tenho o meu subsolo”.1

No texto vemos o personagem em um lampejo de abertura, deixando de estar encerrado em si mesmo, e disposto a considerar “algo melhor” e a “seguir” esse caminho. Mas será que eu estaria disposto a ocupar-me dessa tarefa, a esforçar-me para dialogar com esse que é diametralmente oposto a mim? A chave está na inclinação da cabeça. Se creio que não devo prestar atenção ao outro e àquelas que me parecem bobagens ou enganos em que ele tão piamente acredita, então posso esperar que naturalmente suceda essa ação reflexa de sua parte, um pescoço duro, um ouvido fechado e um coração trancado em seu próprio subsolo.

Custa tanto assim ouvir e interessar-se genuinamente pelo outro? Entendo que muitas vezes haja o desejo para rapidamente chegar aos pontos de desacordo e confrontação. E é possível que uma urgência se faça necessária, por exemplo, quando se trata de cuidar e preservar a vida, em especial do mais vulnerável. Mas não podemos deixar de lado a força do caminhar junto com o outro, o inclinar a cabeça em sua direção, escutar, tolerar, dialogar e nesse processo construir pontes para o “algo melhor” que você acredita ter a oferecer. Ou para revisar algo em sua postura e posição se necessário for.

Aquele estudante em La Paz que cria haver uma só maneira de apresentar o evangelho me fez voltar a pensar no poder das pontes de diálogo para a missão cristã. Voltarei a uns princípios para esse diálogo e sobre se é possível fazê-lo de uma maneira “legitimamente respeitosa” no próximo texto.

Nota:
1. Dostoiévski, Memórias do Subsolo, Ed. Paulicéia, p. 96.

03 outubro 2012

Entre a cruz e o Papa


En Tres Cruces
Upload feito originalmente por val ►
Escrevo da Bolívia, onde participo das celebrações dos 30 anos da “Comunidad Cristiana Universitária” (CCU), movimento irmão da ABU (Aliança Bíblica Universitária) no Brasil. Três décadas buscando viver e levar a mensagem do evangelho de Cristo no mundo estudantil boliviano. O Brasil se alegra por fazer parte dessa história, já que um pioneiro de CCU conheceu ao Senhor através do movimento estudantil em Minas Gerais.

Entre as várias atividades por aqui, um desafio especial. Falar na universidade em La Paz sobre o tema: “Pluralidade e Relativismo”. Em tempos de islamofobia e islamofanatismo, entre outras fobias e fanatismos que padecemos no mundo, a tarefa fica mais difícil. Cresce a opinião em diversos setores que a causa da violência, ou uma de suas principais causas, seja a religião.

Os argumentos utilizados passam pela percepção de que as religiões, em especial as monoteístas, com suas afirmações exclusivistas, ou são cúmplices com a violência ou diretamente a incitam porque provocam um abismo de confrontação entre “nós” (os que creem no único Deus verdadeiro) e os “outros”, os infiéis, os renegados.

Seria o monoteísmo o pai dessa criança, a violência? Seria a fé cristã parte dessa paternidade maldita? Pareceria que sim, vendo os maus exemplos facilmente encontrados hoje no mundo, mas por outro lado o politeísmo ou o ateísmo, entre outros ismos, também podem gerar divisão, exclusão e violência, como é possível constatar na história.

Como cristão, eu diria que parte do que devo fazer é um “mea culpa”, revisando a atitude com que minha fé ocupa o espaço público, em especial no diálogo com outras crenças e ideologias. A tarefa pode começar dentro de casa, reconsiderando como interagimos dentro de nossas próprias tradições cristãs.

Recordo um episódio recente da história uruguaia, como um exemplo que me parece emblemático. O episódio tem 30 metros de altura, toneladas de ferro e pode ser visto em um lugar público, bastante visível e central em Montevidéu. Trata-se da cruz erguida para a missa celebrada pelo Papa João Paulo II em 1987 e posteriormente instalada ali permanentemente como um marco daquela visita.

Ela se instalou não sem um longo debate público nos jornais e no Parlamento1. Depois houve outro debate, dessa vez em 2005, quando evangélicos pediram a remoção de uma estátua do Papa João Paulo II, instalada mais tarde aos pés da cruz, após a morte do Papa. Em carta enviada por setores da igreja evangélica uruguaia ao presidente da República, a crítica veemente à estátua buscou estar baseada na característica laica do estado uruguaio:

"Estamos em um Estado laico, a partir do qual não podemos deixar de manifestar nossa discordância com o ocorrido [a instalação da estátua], considerando-a uma violação do espírito de respeito no marco da ‘laicidade’ em que queremos viver todos os uruguaios e uruguaias. Os símbolos religiosos, fora das instalações de suas próprias igrejas ou instituições e em locais públicos, atentam contra a liberdade de consciência e a ‘laicidade’ do Estado, minando de maneira sutil mas profunda a convivência social ".2

Deixo a palavra “laicidade” seguindo o espanhol “laicidad”, porque traduzi-la como “secularismo” ou simplesmente como “separação entre Igreja e Estado” não comunicariam a força com que ela é utilizada no Uruguai.

É interessante ver que a referida carta busca logo em seguida defender a cruz ali instalada como uma expressão representativa de todo o cristianismo. Isso nos deixa numa situação difícil. Não só a estátua, mas também a cruz seria um alvo legítimo da mesma lógica. A outra possibilidade seria a de ler o documento com a suspeita de que a motivação básica foi a de um conflito religioso, em que cada tradição da fé cristã busca ocupar os espaços públicos, e nessa perspectiva o argumento da defesa da “laicidade” carece de credibilidade.

Se cristãos evangélicos e católicos não se entendem, quem poderia nos ajudar? Talvez um senador agnóstico, que mais tarde seria presidente do Uruguai. Suas palavras, que aparecem nos registros do debate que teve lugar no Parlamento em 1987 sobre a permanência da cruz, foram avaliadas assim:

"Foi fundamental para o debate o discurso de um senador [...] fundamentando a necessidade de viver uma nova forma de ‘laicidade’, não de negação e de combate, mas de respeito às ‘coisas do espírito’ que deveriam voltar a ter uma importância primordial na vida das pessoas.”3

Ser mais tolerantes e respeitosos quanto às expressões públicas de espiritualidade, pode ser uma boa lição que se aprende. No Uruguai precisou vir de um “não religioso”. Seria então um argumento mais para defender que todas as religiões deveriam deixar de existir? Creio que não. A violência, inclusive a verbal, essa é que deve acabar, quer a encontremos no diálogo entre religiosos e não religiosos, quer ela apareça dentro do próprio arraial de fiéis.

Já tomei uma decisão sobre como abordarei o tema na palestra aqui na Bolívia. Não advogarei menos fé no mundo como antídoto para a violência e sim mais fé. Fé que convida ao diálogo, à tolerância e à missão com um profundo sentido de respeito pelo outro. Sim, acredito que tolerância rima com evangelismo respeitoso, mas não tenho mais espaço para explicar isso agora. Então faça o seguinte, peço-lhe o favor. Seja tolerante comigo e nos vemos no próximo artigo.
Notas:
1. Episódio narrado pelo sociólogo Nestor da Costa, em um interessante livro: “Religión y Sociedad en el Uruguay del siglo XXI – un estudio de la religiosidad en Montevideo”, Da Costa, Néstor, CLAEH, CUM, 2003, 200 p.

2. Bolioli, Oscar e Ihle, Armin, Carta enviada pela FIEU ao Sr. Presidente da República, Dr. Tabaré Vázquez, em 25 de abril de 2005.

3. Em Da Costa, Id., p. 73.

16 agosto 2012

Como incidir na sociedade


El megáfono
Upload feito originalmente por (Lolita) • 8
Fui motivado por uma demanda dos estudantes universitários uruguaios, desejosos de entender como sua fé delineia a maneira como incidimos no espaço público. Entrei então no espinhoso desafio de buscar entender como incidimos na sociedade, os possíveis caminhos, mas também as penosas dificuldades. Compartilho aqui algumas ideias iniciais, dentro dos limites do espaço e escopo de um breve artigo.

Parece que muitas vezes imaginamos que as ideias mudam o mundo. Outras vezes pensamos que os atores principais das mudanças são os indivíduos, que, no exercício de sua autonomia e razão, em especial se são gênios carismáticos, produzirão grande impacto na sociedade. Esse tipo de idealismo e individualismo algumas vezes aparece na roupagem de um certo tipo de pietismo cristão expressado no conceito de que ao “mudar as mentes e os corações das pessoas” teremos uma nova nação e sociedade. Converter o indivíduo seria então suficiente, pois tudo o mais viria como consequência.

Confesso que minha própria ação missionária por toda a minha vida tenha sido nutrida desse tipo de expectativa. Ainda admiro líderes cristãos como os irmãos Wesley e também Wilberforce, que com suas ações missionárias foram agentes de profundas mudanças em seu tempo. Vejam o caso de Wiliam Wilberforce, que somente depois de 42 anos de lutas no parlamento britânico viu seu projeto de lei que abolia a escravidão ser aprovado.

Mas como se dão essas mudanças? E seria esse o caso de um herói que agiu sozinho? Não, pois houve uma rede de homens de negócios, das igrejas, das artes e da política que se juntaram com o propósito explícito de promover reformas sociais. Esse grupo, conhecido mais tarde como “Círculo de Clapham” (“Clapham Sect” ou ainda “Clapham Saints”) foi muito influente na Inglaterra do início do século XIX.

O exemplo do grupo de Clapham reforça a ideia de alguns sociólogos(1) que defendem a tese de que não é pela força de uma ideia ou pela simples conversão de corações e mentes que chegaremos a ver mudanças nas estruturas de uma cultura e sociedade. Que na verdade essas mudanças são mais complexas, difíceis ou impossíveis de controlar e prever, mas que quando ocorrem frequentemente estão associadas a elites educadas, redes e instituições que se tornam centros de poder e influência.

Reconheço que tenho dificuldades com essa ideia, a de que as principais mudanças se dão normalmente de cima para baixo, ou do centro para fora. Penso em Jesus e seus discípulos, na periferia do mundo da época; também nas mulheres escravas que foram líderes de muitas daquelas primeiras comunidades. Mas provocado por algumas leituras, também presto atenção agora no argumento de que Paulo e a maioria dos pais da Igreja eram uma elite educada e altamente qualificada, que a fé se expandiu até atingir os centros de poder e que, desses centros de prestígio e influência, muitas vezes exercendo o poder de maneira ambígua, a fé se espalhou e se consolidou em diversas partes do mundo.

Isso me leva a outro ponto relacionado ao tema da incidência na sociedade. O que fazer com a aspiração de alguns por uma “nação cristã”? Seria possível ou mesmo desejável? Sem entrar no mérito da discussão se sequer já tivemos alguma “nação cristã” na história, sugiro que muitas vezes esse caminho está talhado pela ambição de que certos valores ou princípios sejam impostos pela coerção, imposição ou pela lei. É perigosa a ideia de que se pode mudar o comportamento das pessoas pela força de uma política de estado. Parece que muitos cristãos, seja à direita ou à esquerda, creem que a principal maneira de incidir na sociedade se dá através da mobilização política, do referendo, do voto ou da lei.

Ainda que leis ou políticas públicas mais justas sejam desejáveis, o ideal seria a ação de cristãos que defendam em todas as áreas de ação o bem comum de todos, em especial dos menos favorecidos e sem voz, e não simplesmente a defesa dos “seus direitos como cristãos”. Liberdade religiosa ou de expressão é um bem para todos; a defesa da vida digna também.

Mas como entrar nesse debate a partir de uma perspectiva da fé? Se adequadamente excluo a coerção e os interesses sectários, então surge o espaço para a investigação (não a arrogância de achar que já se tem a resposta para todos os problemas), o debate respeitoso (não o ataque com ânsias de destruir o outro), o diálogo (não a tergiversação a respeito do que crê o outro), a persuasão (com humildade e responsabilidade compartilhando o que se crê), levando a ações baseadas não só em valores abstratos, mas em uma presença cristã humilde, fiel e atuante nas diversas esferas da sociedade.

As cosmovisões e as matrizes de cada cultura, ainda que dinâmicas e sempre em mudança, não se transformam da noite para o dia, nem qualquer grupo deve acreditar ingenuamente que tenha em suas mãos as chaves para conduzir essas mudanças. Evangelismo, ações políticas, mobilizações sociais, todo tipo de produção cultural em várias esferas da sociedade, serão por si só positivos, mas não necessariamente ou separadamente a panaceia para desafios enfrentados ou os caminhos certos para as mudanças esperadas.

As ações mais significativas sempre serão as menos interessadas no poder e mais interessadas nos beneficiários de um almejado bem comum, menos enfocadas na dominação de uma agenda ou de “seus direitos” e mais dirigidas aos “direitos de todos”, em especial dos mais excluídos e à margem. No final das contas, muda-se uma sociedade (se é que chegamos a ver o final de certos processos) menos por estar interessado nessas mudanças como um fim em si mesmo do que por estar sacrificialmente comprometido com o serviço, a doação e preservação da vida.

Nota:
(1) Como o excelente e, às vezes, polêmico livro de James Davison Hunter, “To Change the World: The Irony, Tragedy, and Possibility of Christianity in the Late Modern World”, Oxford University Press, 2010.

03 julho 2012

Apologética pura e simples


Mariënwaerdt
Upload feito originalmente por Niquitin
Eu sei, o título é pretensioso, evoca o clássico do guru C. S. Lewis, mas bateu aquela vontade de homenageá-lo nesse exercício que traz mais perguntas que respostas. Algo que o autor do mundo de Nárnia fazia como ninguém. Vamos a elas, às perguntas?

O que seria a apologética, em especial com relação à Palavra de Deus? Do que exatamente estamos falando quando usamos essa palavra?

Na história da igreja cristã já vimos diferentes aproximações à pergunta sobre como alguém chega a crer. Houve aqueles que defenderam que é necessário “compreender para crer”, outros que defenderam o paradigma de que é preciso “crer para entender”, e movimentos mais contemporâneos que defendem que é preciso “pertencer para crer”, em uma alusão à importância do sentir-se parte de uma comunidade no caminho da fé, antes mesmo de abraçá-la.

Quem tem a razão? Possivelmente cada uma das abordagens traz suas verdades, suas fortalezas, mas também suas debilidades. Assim talvez o melhor caminho seja a sensibilidade para entender que há diferentes pessoas, diferentes gerações e culturas, reconhecendo que as rotas que traçamos nos mapas da apologética podem ser variadas.

Bem, havendo usado a palavra apologética já três vezes nesse texto (ops, quatro…) digamos que ela merece uma tentativa de definição. Aqui vai uma comumente usada:

Apologética é a ciência da defesa da fé. Tudo bem, reconheço que a palavra “ciência” aí atrás já condiciona o conceito, como se o mais importante fosse o método científico, razoável, plausível, de apresentar a fé. E, claro, a outra palavrinha, “defesa”, nos complica mais ainda. Ela nos põe na defensiva, como aquela criança pega no pulo e que tenta se explicar. Se defesa nos transmite a ideia de que a fé é culpada de algo e tem que se justificar, então busquemos outra definição.

O tal do Lewis costumava fazer algo que era bacana. Ele dizia que uma coisa não era outra coisa, ou que não era um conjunto de outras coisas, só para no final dizer então do que em verdade se tratava essa coisa. Captou?

Por exemplo, apologética não é evangelismo, porque evangelizar é compartilhar uma boa notícia, com conteúdo, começo, meio e fim, apresentar e propor uma mensagem, de preferência dessas que explicam tudo, ou quase tudo, o que alguns chamam de metanarrativa. Bem, não se complique muito com essa última palavra.

Mas se você gostou, anote aí, apologética também não é metanarrativa, porque não procura dar uma explicação ampla sobre todas as coisas, como se fosse algo definitivo, acabado, com todas as respostas. Seria ambição demais para ela, lembre-se, ela deve ser “pura e simples”.

Apologética também não é confrontação, ameaça, nem argumentos para ganhar discussão. Tampouco é tergiversar, que é aquele negócio de distorcer o que o outro acredita só para parecer mais ridículo e assim desacreditar mais facilmente a posição do outro.

Se não é isso ou aquilo, o que seria? Aqui segue uma simples aproximação: apologética é limpar o caminho, sacar os obstáculos, lavar as lentes dos óculos, tirar a cera do ouvido, remover os preconceitos e convidar a um encontro honesto e genuíno.

Para o propósito específico desse artigo, que é o da apologética relacionada à Palavra de Deus, sugiro alguns passos para que ela seja saudável, pura e simples:

1. Escutar – Quais são as percepções que as pessoas têm a respeito dos textos das Escrituras? Antes de propor algo, busque sondar o que creem, se creem em algo, como creem. Veja se já leram algo, como leram, com que lentes. Que perguntas elas tem? Essa será uma importante etapa para chegar ao próximo passo.

2. Fazer perguntas – Comece com as perguntas que as pessoas, em especial seus amigos não cristãos, fazem ao texto. Às vezes são questões que os impedem de chegar ao texto, outras vezes são perguntas que levantam quando leem o texto. Que elas venham! Se forem prévias ao texto, por exemplo ao não acreditar nas intenções de quem escreveu, busque devolver as perguntas, com sensibilidade e respeito. Por quê? Seria mesmo tudo montado? Como você vê o texto? Certa vez recordo que um amigo da universidade disse que havia muita coisa “inventada”, “adicionada”. Eu lhe perguntei “quanto por cento?”. Depois de me olhar meio estranho, disse “sei lá, pelo menos uns 30% deve ser adição feita tempos depois”. Devolvi, “estou satisfeito com 70%, vamos ler juntos?”. Aí há um ponto de partida, um começo, que é onde a pessoa está e não onde eu gostaria que ela estivesse.

3. Construir pontes – A razão tem lugar? É razoável supor que sim. A emoção também? Intuo que esta também tenha o seu lugar. E se há objeções pessoais, morais, da história de vida de alguém que a impede ou de chegar à Palavra ou de aplicar em sua vida uma verdade aí descoberta? É preciso saber construir essas pontes, limpar o caminho, ajudar a que se deem esses encontros pessoais, no estilo de cada um, com a Palavra e o Espírito que a inspirou. Nossas opiniões, interpretações ou pregações não substituem a beleza e o poder desse encontro pessoal de cada um com o Senhor através da Palavra.

4. Construir relações – Aprendi desde cedo na ABU que a Palavra também se lê e se entende em comunidade, que não é algo acessível só aos eruditos. Que ela também se lê em relação aos contextos (de quando foi escrita e os de agora), em um processo onde a realidade traz perguntas à Palavra e por sua vez as Escrituras também desafiam a realidade. É um ir e vir dinâmico, onde a comunidade é essencial porque vamos entendendo e obedecendo juntos. Apologética relacionada à Palavra é também “ler junto com” o outro.

5. Deixar a Palavra falar – Um grande perigo é achar que já sabe o que a Palavra irá dizer sobre qualquer assunto. O alerta serve para crentes e não crentes. Como saber se estou caindo nessa armadilha? Um bom indicativo é checar se você sempre está buscando no texto os argumentos que reforçam aquela sua posição já consolidada sobre algum tema. E um bom sinal positivo é se você fica encucado com um texto, se ele te desafia, se te provoca a pensar mais, a orar mais, a ver junto com outros na comunidade se é necessário rever uma postura que talvez seja mais fruto da tradição do que uma desafiadora verdade descoberta na Palavra.

Cinco sugestões sem muitos devaneios e argumentações que espero nos ajudem a entender os caminhos dessa tal apologética pura e simples.

Obs: texto originalmente publicado em "Entre Nós", uma publicação da ABUB.

19 junho 2012

É fácil pecar?


É Proibido
Upload feito originalmente por Elisa Martins
Ainda me surpreendo, com o meu pecado e o alheio. Não deixo de notar que meu coração segue entranhado no mal, minha língua continua rápida para ferir e minhas mãos ainda são rápidas para fazer o que não devo e ágeis para se omitir onde e quando deveriam atuar.

Talvez por isso minha surpresa ao deparar-me outra vez com essa pequena frase da primeira carta João ao preparar as exposições bíblicas para o recente congresso nacional da ABU (Aliança Bíblica Universitária): “seus mandamentos não são pesados” ou, em outra tradução, “seus mandamentos não são difíceis de obedecer”*. Como assim? Eu, e aqueles estudantes universitários com quem eu me reunia para estudar a Palavra sabemos que facilmente nos enredamos no mal. E que muitas vezes só com dificuldade alcançamos seguir o bem e a justiça.

Como resolver essa equação? Devo confessar e reconhecer que minha cabeça de engenheiro segue uma lógica linear, bem diferente da lógica circular do texto da carta. João tem essa mania de dar voltas, de repetir-se, de dificultar a nossa tarefa de tentar preparar uma exposição e esboço mais lineares, concatenados e objetivos.

Minha esposa adorou saber que a lógica de 1 João é mais circular. Parece que isso tem a ver com os momentos da vida privada do casal quando já cheguei a lhe dizer algo como “não tem lógica esse seu argumento”. “É só uma lógica diferente”, dizia ela. Agora, inclusive, ela anda contente com essa aparente “base bíblica”, sugerindo de forma marota que seus argumentos seguem “uma lógica como a de João”.

Voltemos ao tema do pecado, de onde saímos. Como resolvo o dilema, esse sobre se seria fácil pecar, como minha experiência e a de muitos sugere ou se seria fácil obedecer, como sugere o apóstolo amado?

O caminho das equações, das razões e proporções me oferece uma luz. Me parece que quanto mais perto do Senhor, em íntima e cultivada relação, mais fácil é para mim obedecer. E quanto mais longe do Senhor, quanto mais distante de seu coração e de seus propósitos para mim, mais pesados serão os seus mandamentos e, por conseguinte, mais fácil será pecar.

Abro parênteses para sugerir que paremos de ver o pecado como algo que esteja fora de nós, para o qual olhamos e analisamos a partir de um ponto de vista frio, objetivo e imparcial. Nossa natureza é pecaminosa. Assim o comum e o natural são a maldade, a injustiça e a omissão que brotam de nosso coração. O ponto de partida sempre deve ser o reconhecimento de nosso estado e nossa confissão. Assim se pavimenta a rota para a santidade e a retidão.

Seja na ecologia, na economia, na sexualidade ou na devoção, peco mais fácil quando me afasto da luz e me perco nas trevas. Na escuridão eu não consigo ver a realidade ao meu redor, não sei para onde estou indo e ainda faço com que outros tropecem**. Mas quando me aproximo de Deus e de sua Palavra, seus mandamentos não pesam e a obediência me leva à paz e à justiça nas micro-relações pessoais, na relação com Deus e na vida ética do povo de Deus no mundo onde o Senhor nos colocou. Fácil pecar ou fácil obedecer? Depende de você, do que você se alimenta e por onde você anda.

Notas
* 1 João 5.3b, NVI e NTLH
** 1 João 2.10,11

28 maio 2012

Lições da África


Cape Coast castle
Upload feito originalmente por Andy_Bmore
“Use sua imaginação”, nos disse o guia, ao passar pela “porta sem volta” (“door of no return”) no Castelo da Costa do Cabo (“Cape Coast Castle”) em Gana, na África Ocidental. “Busque pensar no que passava pela cabeça daqueles que saíam daqui para nunca mais regressar à sua terra e família”.

Por ali passaram inúmeros dos milhões de africanos capturados para o trabalho escravo nas Américas. Antes haviam sido armazenados em condições inumanas nos escuros porões de pedra desse castelo mantido ativo pelos britânicos de 1665 a 1807, o principal centro “exportador” que alimentava o tráfico escravo transatlântico.

A voz do guia quase sumia quando meu pensamento voava pelas datas indo até os cristãos britânicos daquela época. Era difícil me concentrar, me mareava, sem saber o que pensar caminhando por pequenos e sombrios calabouços onde metiam 200 a 300 pessoas. Amontoados e rebaixados à degradação, seres humanos feitos à imagem de Deus, o mesmo Criador em quem professava sua fé a maioria dos habitantes da nação responsável por administrar esse centro de horrores.

Esse havia sido meu dia “livre”, de “passeio”. Mais tarde, regressei à consulta em que participava com muitas perguntas, um tanto incomodado e perturbado. O encontro com 30 representantes de todas as regiões do mundo era para discutir como deve se dar a formação de estudantes e profissionais para que sejam fiéis ao Senhor e relevantes em sua geração. Voltei então às minhas notas e separei três frases que escutei durante a consulta e que me ajudaram a delinear agendas para o caminho adiante.

“Nosso principal objetivo é investir em pessoas”. Foi a frase que recordo ter escutado bem ao início do encontro, a primeira que escrevi em meu caderno. Daniel Bourdanné, o atual líder da equipe internacional da comunidade (IFES) que congrega mais de 150 movimentos estudantis cristãos em todo o mundo, como a ABU no Brasil.

Prédios, livros, currículos, programas, somente possuem sentido se houver um foco na transformação integral da pessoa. Não basta só enfocar o desenvlvimento de sua capacidade intelectual ou a quantidade de conteúdo que dominará. Ou ajudamos a formar discípulos que são integralmente transformados e agentes de mudança ou então de nada serve o esforço. Cada processo de formação tem que ser pessoal, preocupado com o caráter, com as relações e com a conexão do indivíduo e sua comunidade com o seu mundo.

“Recuso que a vilania seja necessária”. Foi um privilégio ter o missiólogo Andrew Walls, do alto de 80 anos de vida e experiência, contando em prosa fácil as lições da história da igreja, na África, na China e também de sua terra natal, o Reino Unido. Daí essa sua frase acima, uma citação de John Wesley (“Pensamentos sobre a escravidão”, de 1774).

O tráfico de seres humanos era altamente rentável no século XVIII. Assim como os motores da economia que hoje produzem o aquecimento global (para o caso de ser um dos céticos no tema, pense pelo menos na exploração indevida e na destruição dos recursos naturais do mundo que deixam como legado um mundo bem pior para as futuras gerações). Ou ainda como a lucrativa exploração sexual de mulheres, de imigrantes não documentados e de crianças. Rentável como os negócios dos senhores das drogas ou dos mestres das especulações financeiras que na atualidade desempregam a milhões e deixam a outros bilhões excluídos do sistema.

Que fazemos com a vilania? Consultas, como a que eu estive, para “discutir” o assunto? Claro que nada de errado há com as reuniões, mas algo está muito mal quando gente morre nos porões dos castelos contemporâneos de escravidão, passando por portas muitas vezes sem volta, sem que nos preocupemos, oremos e nos mobilizemos em obediência missionária transformadora.

“Alimentamos-nos da história ao caminhar para o futuro”. Quando ouvi Pete Lowman (esse estimado irmão que já escreveu um livro sobre a história do movimento estudantil cristão no mundo) dizer essa frase, tomei a resolução de buscar aprender mais com os erros e os acertos do passado. Não para grudar nostálgico no retrovisor, nem para ler acriticamente ou ingenuamente a história. Mas para reconhecer que cada geração tem os seus problemas e precisamos aprender em comunidade a responder aos desafios dessa que nos cabe viver. Carecemos do trabalho precioso dos historiadores ao examinar o passado! Necessitamos da sensibilidade e coragem dos profetas para os passos que damos no presente, aqueles que seguramente determinarão o nosso futuro.

Sem aprender do passado me torno arrogante, sem obediência no presente me torno negligente e sem enfrentar o futuro me torno irrelevante. Essas são portas perigosas, a arrogância, a negligência, a irrelevância, quase sem retorno. Outra vez ouço o convite daquele guia, “use sua imaginação”. Uso-a agora para sonhar que voltamos à Palavra de Deus com humildade, diligência e antenados com o nosso tempo. Para que em comunidade saibamos formar os discípulos e discípulas de Jesus que no mundo de hoje serão relevantes em missão.

16 abril 2012

Correr faz bem à alma


Pewter Run Pendant
Upload feito originalmente por mytriathlonjewelry
Em viagens pela América Latina tenho adotado o hábito de sair para correr com estudantes. Enquanto corremos eu lhes peço para pensar em textos bíblicos que os motivam à atividade física e que compartilhem como a prática esportiva lhes ajuda em sua vida espiritual.

Antes de revelar o que ouço abro parênteses para as objeções que às vezes escuto, normalmente dos que não se animam ao tour desportivo: “O que é eu quero é correr ou esforçar-me contra a injustiça”, “prefiro dedicar-me à oração”, “o tempo é que corre e muitos estão perdidos”, “prefiro levantamento de garfo, ou de copo” e outras nessa linha. É louvável o humor imaginativo, mas é menos apreciável a habilidade para criar dicotomias desnecessárias.

Às vezes as observações são acompanhadas por citações bíblicas e uma delas é curiosamente sempre mal citada. Geralmente dizem que o Paulo das Escrituras falou algo sobre o exercício físico ser de nenhum proveito. Interessante, logo Paulo que utilizou boas metáforas sobre o atleta e que em verdade disse que o exercício físico era de “algum proveito” (1 Tim. 4:8). Possivelmente se opunha à idolatria da atividade física, fazendo uma comparação entre o que era de proveito para essa vida, o exercício físico, com a piedade, que seria de proveito tanto para essa vida como para aquela outra depois da morte. Quer ser bom mordomo da vida que Deus te dá agora? Então preste atenção à atividade física.

Sobre essa memória bíblica que nos trai, proponho um teste. Pergunte a pessoas que tenham uma familiaridade com a Bíblia: “como é mesmo aquele texto em que Paulo fala sobre se há proveito ou não na atividade física?”. Observe então quantos dirão que Paulo afirma que “nenhum proveito” há ou que citarão “para nada serve”. Aproveite e faça um segundo teste. Pergunte sobre aquele outro texto em que Paulo fala sobre “estar de pé e cair”. Anote quantos dirão “quem está de pé cuide que não caia”, citando muito mal a exortação do apóstolo que alertava que “aquele que pensa estar de pé é melhor ter cuidado para não cair” (1 Cor. 10:12, NTLH). Sutil mas fundamental diferença. Uma luz amarela para aqueles que pensam que não precisam se cuidar.

Voltando àquelas vivências de sair para correr com estudantes de diferentes países, compartilho alguns textos citados em resposta à pergunta sobre as passagens que os motivam:

“Corro direto para a linha de chegada a fim de conseguir o prêmio da vitória”, “corram de tal maneira que ganhem o prêmio”, “o atleta que toma parte numa corrida não recebe o prêmio se não obedecer às regras da competição”, “os que confiam no Senhor... correm e não perdem as forças” (1).

É uma experiência muito interessante ouvir esses relatos, vendo as conexões que fazem e sua visão integral de uma vida saudável. Quanto à pergunta sobre como lhes ajuda a atividade física e os benefícios que essa lhes traz à sua vida, aqui vão algumas respostas que ouço:
“Ajuda-me a ter mais disciplina”, “agora consigo orar mais”, “planejo melhor minha vida e meus horários”, “conheci novas pessoas”, “me sinto mais forte para novos desafios”, “tenho mais disposição e saúde”, e por esse caminho seguem.

Para mim a motivação começou assim(2). Ela chegou em tempos de sedentarismo, de colesterol e triglicerídeos nas nuvens, de pecados preguiçosos e gastronômicos. Sim, comer mal também é pecado. Sinto muito por revelar essa verdade incômoda ao seu estômago, mas me alegro por ao menos despertar a sua acomodada alma. Também teve seus benefícios secundários importantes, como conseguir organizar-me melhor e a curiosa observação da esposa amada de que meu humor havia melhorado muito (como não consigo me lembrar se meu humor era assim tão ruim antes, talvez o esporte não tenha efeitos positivos sobre a memória).

Há tentações no caminho? Claro, somos assim, cheios de ambiguidades e defeitos. Há que tomar cuidado para evitar as comparações com os demais (o importante é que você mesmo progrida), com a competitividade extremada (reconheça seus limites), com a idolatria do corpo (cuidar é diferente de ser obsessivo) ou vigiar para não descuidar das relações, da família e das causas nobres a que te sentes chamado a cooperar com a sua vida e com a capacidade que Deus te deu.

Estou seguro que quando você decida se cuidar melhor “você salvará tanto você mesmo como os que o escutam” (1 Tim. 4:16). Busque avaliar se você já pensa que “está de pé” e que não precisa de mais esforço e de cuidado na vida. Imaginar que já estamos bem é o primeiro passo para o abismo. Cuidar, avaliar, revisar e esforçar-se pode ser um bom início ou o recomeço de uma nova e frutífera etapa na vida. Recobrará forças e assim estará mais em forma para lutar contra a injustiça, pecado e maldade no mundo.

Aproveite e compartilhe o que te anima ou o que te impede nesse caminho de cuidado com a vida. Juntos, porque a comunidade aqui também é importante, podemos correr, caminhar, nadar ou pedalar, valorizando a vida por onde o Senhor nos leva nesse mundo. Então, me diz aí, a que horas você colocará o despertador para tocar e com quem você irá correr amanhã?

1 Filipenses 3:14; 1 Coríntios 9:24; 2 Timóteo 2:5; Isaías 40:31 (NTLH)
2 Agradeço ao amigo e mestre Ziel Machado por animar-me nesse caminho.

14 março 2012

2050 – O economista louco e o profeta


Untitled
Upload feito originalmente por Shelba
"Qualquer um que acredite em crescimento indefinido em qualquer coisa material, em um planeta finito, ou é um louco – ou é um economista”.
Kenneth Boulding, conselheiro ambiental do então presidente norte-americano John Kennedy, há cerca de 45 anos.

Certa vez o personagem de minha infância, o Chico Bento, tentou ocupar o lugar de Deus. Pelo que me lembro, se saiu mal. E se nós tentássemos esse jogo? Hipoteticamente, claro. Imaginem que tentemos elevar o nível de consumo daqueles que vivem nos chamados países em desenvolvimento ao mesmo nível dos que vivem na América do Norte, Europa, Japão e Austrália. Qual seria o resultado?

Na prática, diz o geógrafo autor de um polêmico livro(1) sobre como será o mundo em 2050, isso multiplicaria por 11 o consumo global de recursos. Seria como se a população mundial saltasse dos atuais 7 bilhões para 72 bilhões. Um pouquinho apertado, não?

Aliás, abro um breve parêntese para dizer que é hipnótico entrar em algum site da Internet que estima em tempo real a população mundial. Ver aqueles números de nascimentos e mortes dando voltas sem parar, competindo entre si como incansáveis gladiadores giratórios me deixa mareado. Aviso dado, fecho os parênteses. Perdão, me esqueci de dizer que por agora os nascimentos vão ganhando das mortes a uma taxa aparente de quase 150 a mais por minuto. Agora sim fecho o que abri, não sem antes confessar que não sei bem se isso é boa ou má notícia.

Aclaro que não é por fobia de gente que a notícia me preocupa. Se Deus as ama, não importa o número, porque eu não deveria ao menos tentar seguir seu exemplo? Mas parece que o jardim terráqueo que aquele lá do alto criou tem recursos limitados. Esse é um detalhe importante e supostamente óbvio, mas o extraordinário é que a preciosa informação sobre os recursos restritos do planeta parece não entrar na lógica de quem manda no mundo, os economistas.

Se o globo terrestre é finito por que é que continua a dominar a lógica pura e simples do crescimento econômico como a panaceia dos nossos problemas?

Voltemos à brincadeira de tentar ser Deus. Pensemos no experimento do primeiro parágrafo, mas agora buscando fazer todo esse upgrade nas condições de vida da população do planeta dentro dos próximos 40 anos. Aquele geógrafo nos diz que o resultado seria ainda pior, “então o mundo natural teria que avançar para produzir o suficiente para sustentar o equivalente a 105 bilhões de pessoas”. De onde viria toda a carne, peixe, cereais, água, energia, plástico, metal, madeira?

Mas, diria o observador arguto, “seremos tantos assim no mundo?” Não, não o seremos. É só um exercício hipotético considerando o padrão de vida e bem-estar de países desenvolvidos. Alguns indignados idealistas dirão que se isso não é uma utopia realizável então o desafio é baixar o padrão de consumo dos ricos. Outros milionários desanimados diriam que se todos serão ricos, então ninguém será rico. Um tédio total para aqueles que no final das contas queriam era se destacar da gentalha.

Veja bem que das legiões da periferia costuma sair de vez em quando um profeta. Outro dia desses ouvi um deles. Vinha do sudeste asiático, mais precisamente do Sri Lanka. O provocador Vinoth Ramachandra(2) (que profeta não é provocador?) cutucou a todos os estudantes líderes de movimentos estudantis como a ABU, vindos de vários países da América do Sul, reunidos no Paraguai. Ele disse algo mais ou menos assim, “oremos por um colapso do sistema econômico mundial”. Houve uma agitação no plenário. Muitos não engoliram bem aquela ideia. Não sei se pensavam em suas economias, já que no caso dos estudantes essas seriam meio que virtuais. Mas alguns falaram do sofrimento que isso provocaria a muitos, a perda de empregos, etc. A resposta cortante veio com outra pergunta sobre em qual mundo vivíamos, pois o sofrimento causado por sistemas econômicos injustos e opressores já é o pão diário de bilhões de pessoas.

Uma crise ou colapso, seja financeiro ou pela escassez dos recursos mundiais, ajudaria? Os profetas diriam que os exílios ou as peregrinações pelo deserto podem ajudar a despertar ouvidos que se fazem de surdos e olhos que não querem ver. Mas sei também que os próprios profetas não gostam de entregar essas mensagens, que lhes queimam e consomem por dentro. O profeta só denuncia e anuncia porque Deus assim o manda e porque faz nascer nele a esperança de que uma realidade diferente possa ser vivida.

Falando dessa outra realidade, nesses dias encontrei consolo e esperança ouvindo o excelente álbum “Ghosts Upon the Earth” (“Fantasmas sobre a Terra”), da brilhante banda Gungor. Inspirados pela alegoria de C. S. Lewis, “O Grande Abismo”, quando os seres humanos da cidade cinzenta viajam até os limites do que seria o Céu, onde descobrem que esse é surpreendente e dolorosamente muito mais real do que a sua existência atual. Vislumbram que há uma realidade possível, “mais real” do que eles imaginam ou vivem. Alguns se fascinam e entram nessa nova realidade. Outros não a suportam e voltam atrás.

Qual é a realidade, o país e o planeta em que a gente quer viver? A fantasia cinzenta irreal dos economistas do crescimento e da ilusão da fartura primeiro-mundista? Ou será que finalmente a perspectiva absolutamente real do Céu nos fará viver em obediência criativa na história hoje, ouvindo os profetas da sustentabilidade que nos são enviados?

1 The World in 2050: Four Forces Shaping Civilization's Northern Future, Laurence C. Smith, Penguin Group, 2010.
2 Vinoth Ramachandra é o secretário associado de IFES para o diálogo e o compromisso social (http://vinothramachandra.wordpress.com/)

12 fevereiro 2012

Carnaval: negar, “utilizar” ou ressignificar?

Escrevo do Uruguai, a terra do “carnaval mais longo do mundo”, com 40 dias de duração. Sim, desculpem-me Pernambuco, Bahia ou Rio, mas o carnaval também é uruguaio.

Aqui, como em outras partes do mundo, boa parte da igreja evangélica olha com reprovação as festividades em torno do carnaval, em crítica, negação ou simplesmente escape em direção aos seguros retiros espirituais.

É fácil perceber a tensão que existe no olhar da igreja evangélica a certas manifestações e celebrações culturais, como o carnaval e o Halloween, por exemplo, onde é possível encontrar referências cristãs (alguns diriam que diluídas ou distorcidas) em suas origens ou na evolução de sua história.

Também, de modo até surpreendente, há outras festas que geram uma rejeição por parte de certos grupos cristãos, seja ao Natal ou a versões da Páscoa. Argumenta-se sobre suas origens pagãs em um caso, ou a sobre a contaminação com elementos estranhos a fé no outro.

Possivelmente haja riscos ao levantar em tão pouco espaço perguntas sobre essas abordagens. Mas os questionamentos, ainda que sem as respostas, poderiam nos ajudar a pensar um pouco mais sobre o tema.

Apresento aqui três possíveis aproximações de cristãos evangélicos a certas manifestações culturais, seguidas de algumas questões para provocar a reflexão.

1.A negação – Seria a atitude de ver em certa expressão cultural somente seus aspectos negativos. Para muitos cristãos, no caso do carnaval esses estariam relacionados com a libertinagem da carne (numa condenação de todos os excessos que ocorrem nesses dias), para outros com as associações com poderes malignos invisíveis, ou ainda com essa autonomia humana rebelde, alegre e independente, que busca desprender-se de qualquer prestação de contas a um Deus criador.

Perguntas: Por que somos rápidos em condenar algumas expressões do pecado e somos omissos em outras? Por outro lado, não seria correto condenar o intento humano de querer ser “livre” buscando a liberdade onde não a encontrará? Seria possível, como em muitos dilemas da vida, condenar o que está mal e afirmar o que está bem? Como escolhemos o que condenamos e o que não? Como faço para discernir o mal do bem em tantas manifestações culturais?

2.A visão utilitarista – Seria a aproximação de alguns grupos que vêem em certas festas uma oportunidade para se envolver em missão, talvez inspirados em Paulo, fazendo-se de tudo para ganhar a todos, entrando de maneira organizada nos blocos de rua, nas celebrações, mas buscando fazê-lo com uma “linguagem cristã”, com a intenção de alcançar e converter os foliões perdidos.

Perguntas: Obviamente não está mal querer cumprir o mandato missionário em todas as oportunidades que encontramos, mas não seria ingênuo achar que somente a mudança da linguagem já seria suficiente? Como nos conectamos com os demais? Somos somente aqueles outros que querem “ser diferentes” sem entender bem o porquê de ser diferentes? Qual a verdadeira “eficácia” de anunciar sem ouvir ao outro, sem servi-lo, sem compreendê-lo? Em que medida uma motivação proselitista utilitária mais atrapalha do que ajuda em meu testemunho?

3.A ressignificação – considerando que certas festas possuem uma ligação direta ou indireta com o calendário cristão, ou que se acercam de alguma maneira a valores que, vistos à parte, são identificados ou possuem pontes de contato com as crenças cristãs, como:
a.A alegria e a celebração da arte, da vida e do corpo que Deus nos deu
b.A clara vitória da vida sobre a morte (nos casos óbvios da Páscoa, mas também na origem da festa do Halloween, ou “All Hallow’s Eve”, a véspera do dia de todos os santos, em que os cristãos recordariam os seus “santos”, ou seja, todas as pessoas queridas crentes que já se foram, a sua fé, o legado que nos deixaram, zombando então do pífio poder da morte e celebrando a vitória da vida)
c.O maior milagre de todos, pelo menos para os cristãos, que é a encarnação do Deus Criador em um frágil ser humano. Não há pinheirinho ou Papai Noel que ofusquem a força dessa mensagem encarnacional de esperança e de vida.

Perguntas: Quais são possíveis caminhos para ressignificação de certas festividades populares, para compreendê-las e celebrá-las de uma nova maneira? Como ensinamos aos nossos filhos a prudência, a sensibilidade e a vivência saudável de certas manifestações de nossas culturas? Como evito o sincretismo e a ingenuidade, ao mesmo tempo em que estimulo artistas, cantores, produtores culturais, cidadãos cristãos metidos no mundo, nas diversas esferas e grupos da nossa sociedade, a cumprir seu mandato cultural e missionário?

Aqui não tenho as respostas. Mas sou agradecido por fazer parte de uma comunidade de discípulos que humildemente segue buscando caminhos e respostas para a vida e missão, na cultura e no mundo onde o Senhor nos enviou.

Recomeçar


Time goes by
Upload feito originalmente por Frodrig
Que princípios me guiam quando começo uma nova etapa, projeto ou desafio na vida? Em horas assim eu me identifico com aqueles discípulos que pedem a Jesus, “aumenta em nós a fé” (Luc. 17:5). Ao ver a resposta de Jesus e a sequência de eventos narrada por Lucas, encontro três princípios norteadores:

Princípios
1. Fortalecer a fé cultivando um coração agradecido
Lucas descreve a cura dos dez portadores de hanseníase em que somente um deles, o marginalizado samaritano, volta para agradecer. A ele Jesus diz “a tua fé te salvou” (Lc 17.19). Ora, os outros também haviam sido curados, mas a diferença com esse é que houve reconhecimento e gratidão quanto ao que havia passado. Para ele então haverá fé fortalecida e reafirmada para enfrentar o que virá. Gratidão e fé andam de mãos dadas. Quem é capaz de reconhecer tudo o de bom que já passou consegue ver com mais sossego e confiança aquilo que ainda virá.

2. Cuidar e vigiar a minha vida
Em seguida aparece a pergunta sobre a vinda do Reino de Deus. Jesus se contrapõe à arrogância de quem diz que o “o Reino está aqui ou ali” com uma curiosa receita. Ele diz que em verdade o Reino já “está entre vocês”. Assim os prepara para os tempos de aflição que chegarão. Não mais expectativa e especulação sobre o que virá, mas alerta para que cuidem e vigiem o que já está, a sua vida. Ecoa a exortação que apareceu antes, “tomem cuidado” (Lc 17.3), a mesma de Paulo a Timóteo (“cuide de você mesmo e tenha cuidado com o que ensina”, 1 Tm 4:16). Cuidar e vigiar sempre, e mais ainda quando tudo vai bem, quando sou bem-sucedido e em experiências de poder e influência. Cuidado e humildade serão bom acompanhamento para tudo o que está por vir.

3. Perseverar na confiança em um Deus bom e justo
Uma viúva insistente e um mau juiz nos trazem o terceiro princípio (Lc 18.1-8). Essa mulher luta por justiça. Quem pode trazê-la é indiferente e iníquo. Ela não se importa, nem desanima, ao contrário, persevera, consegue que se atenda o seu pleito. A lição? Se um juiz assim promove a justiça, quanto mais não o fará um Deus que é bom e justo. A perseverança muitas vezes é tudo o que nos resta. Sem resposta, sem inclusive sinais de que ela chegará, só nos cabe a obediência simples de seguir no mesmo correto caminho, confiando no Deus de justiça.

Contextos
Também vejo na Palavra três contextos em que somos chamados a cumprir uma tarefa. Eles são a necessidade (Gn. 2.5, “não havia ninguém para cultivar o solo”), a falta de esperança (Ez 37.11, “nossa esperança desvaneceu-se”) e o medo (Jo 20.19). Em cada um desses episódios o elemento comum é o sopro do Senhor, que nos comunica três verdades fundamentais:

Verdades
1. Deus nos dá a vida e a sustenta.
Quando o Espírito do Senhor sopra sobre o homem, lhe dá fôlego de vida, mas não só isso, lhe dá um sentido e um propósito à vida, cultivar e guardar esse jardim onde foi plantado. Não só minha vida, mas as tarefas e os projetos terão novo sentido com o sopro de poder daquele que me criou. A necessidade pode até ser um elemento importante de nosso chamado, mas essencial em verdade será o doce propósito sussurrado por esse sopro.

2. Deus renova todas as coisas
Os ossos sequíssimos são o símbolo inapelável da desesperação. Mas o sopro é a evidência de que a desesperança não tem a palavra final. Em um processo, em etapas, os ossos ganham carne, tendões, pele, e ao final o sopro de vida. Nada está tão seco ou estragado que não possa ser restaurado. Parece que os mais jovens tendem a crer que um erro ou tragédia seja o final da história. Por outro lado parece que muitos anciãos conseguem desenvolver essa capacidade de crer que um equívoco, mesmo que grande, não nos determina. É preciso recuperar a capacidade de confiar em um Deus que renova com o seu sopro todas as coisas.

3. Jesus nos envia na sua paz e no poder do Espírito
Jesus morto e ressuscitado, mas as dúvidas e as perseguições atemorizam os discípulos. Reunidos a portas fechadas, Jesus os visita, e por três vezes lhes diz: “Paz seja com vocês”. Assim os consola antes de soprar sobre eles enviando-os da mesma maneira que o Pai lhe havia enviado (Jo 20.21). O medo será natural, moeda corrente, mas o sopro nos conduzirá em paz, no seu poder, no aprendizado do estilo de Jesus para a vida e a missão.

Três princípios, três contextos, três verdades que fundamentam novos projetos. Que sopre sobre nós o bom vento do Senhor!