16 outubro 2012

Missão rima com diálogo


Dialogo sui massimi sistemi
Upload feito originalmente por Jack Denny
Terminada a palestra, vejo uma mão levantada no fundo do auditório. Sem saber se a pergunta vinha de um estudante crente, ateu ou agnóstico, ouço ansioso a pergunta. Logo descubro, não sem antes ficar desconcertado ao ouvir: “Você não vai falar sobre a segunda vinda do Senhor Jesus?”

Lancei rápidos olhares ao resto do auditório, buscando rastrear quem mais ali seria do clube dos crentes (aliás, ao qual pertenço) ou quem também estaria ali como eu, meio perdido com a questão. Logo vi um, aparentemente descrente, com uma cara que parecia dizer “como diabos apareceu essa pergunta e o que ela tem a ver com o debate sobre ‘Pluralidade e relativismo’?”. Bem, esse companheiro incrédulo tampouco creria no diabo, mas isso é conversa para outro momento.

Isso aconteceu na universidade pública em La Paz, Bolívia, naquela atividade a que me referi no artigo anterior. Quando tudo terminou, pude conversar pessoalmente com o piedoso estudante da “indagatória”. Ele parecia muito angustiado porque eu não havia pregado sobre a segunda vinda naquela hora e lugar. Sua aparente motivação era seu ardente desejo de que muitos fossem salvos. Quando eu lhe disse que possivelmente muitos não entenderiam a mensagem do evangelho se eu começasse por aí, veio então seu comentário que terminou por desconcertar-me, “é assim mesmo, muitos rejeitarão o evangelho!”.

Recuperado de minha surpresa, lhe disse algo mais ou menos assim: “se estás de fato interessado com a salvação de seus colegas, é melhor que se preocupe com a maneira com que lhes comunica o evangelho de vida em Cristo. Certamente muitos o rejeitarão, mas não devemos nos esconder detrás de uma pobre e imperfeita apresentação do evangelho. Nosso dever é construir pontes, viver e comunicar bem esse evangelho. Com certeza haverá rejeição, mas pelo menos teremos feito a nossa parte e o resto a gente deixa para o Espírito.”

Construir pontes foi o que o apóstolo Paulo fez em muitas ocasiões, mas aqueles que trabalham entre estudantes se maravilham em especial com o que ele fez em Atenas (Atos 17.16-34). Vejam como Paulo lidou com as aparentes barreiras ou obstáculos que encontrou ali: a idolatria, o interesse aparentemente fútil pelas novidades, um santuário meio engraçado no caminho, uma intelectualidade soberba dos atenienses. Em tudo o que poderia ser visto como obstáculos, barreiras, Paulo, ao contrário, viu oportunidades para construir pontes e comunicar o evangelho.

Interessados nas novidades? Conversemos, todos os dias. Idolatria? Que bom que estão em uma busca espiritual. Orgulhosos de seus autores e de suas escolas filosóficas? Também os li e posso comentar a respeito de certos conceitos ou mesmo fazer citações de textos onde acertaram no alvo. Aquele altar por ali? Justo a partir dele lhes explicarei algo bem importante. Ou seja, para Paulo, cada uma das dificuldades era vista como uma oportunidade e um excelente ponto de partida para construir pontes de comunicação.

No final das contas sempre se chega a partes da mensagem em que há desacordos. É natural, algo que se espera em qualquer diálogo honesto. E que nos leva a duas perguntas extras. Primeira: como é que chegamos a esses momentos de confrontação, de que maneira? E a segunda: é possível que essa confrontação seja legitimamente respeitosa?

Quanto à primeira, recordo do livro que li avidamente em minha época de estudante universitário quando eu buscava compartilhar minha fé com meus companheiros. Nessa obra de Dostoiévski, o atormentado personagem de “Memórias do subsolo”, fechado em seu próprio mundo, diz em determinado momento:

“Destruí os meus desejos, apagai os meus ideais, mostrai-me algo melhor, e hei de vos seguir. Direis que talvez não vale a pena mesmo ocupar-se disso; mas, neste caso, posso responder-vos de modo idêntico. Estamos argumentando a sério; mas, se não quiserdes dignar a dirigir-me a vossa atenção, não serei o primeiro a inclinar a cabeça. Tenho o meu subsolo”.1

No texto vemos o personagem em um lampejo de abertura, deixando de estar encerrado em si mesmo, e disposto a considerar “algo melhor” e a “seguir” esse caminho. Mas será que eu estaria disposto a ocupar-me dessa tarefa, a esforçar-me para dialogar com esse que é diametralmente oposto a mim? A chave está na inclinação da cabeça. Se creio que não devo prestar atenção ao outro e àquelas que me parecem bobagens ou enganos em que ele tão piamente acredita, então posso esperar que naturalmente suceda essa ação reflexa de sua parte, um pescoço duro, um ouvido fechado e um coração trancado em seu próprio subsolo.

Custa tanto assim ouvir e interessar-se genuinamente pelo outro? Entendo que muitas vezes haja o desejo para rapidamente chegar aos pontos de desacordo e confrontação. E é possível que uma urgência se faça necessária, por exemplo, quando se trata de cuidar e preservar a vida, em especial do mais vulnerável. Mas não podemos deixar de lado a força do caminhar junto com o outro, o inclinar a cabeça em sua direção, escutar, tolerar, dialogar e nesse processo construir pontes para o “algo melhor” que você acredita ter a oferecer. Ou para revisar algo em sua postura e posição se necessário for.

Aquele estudante em La Paz que cria haver uma só maneira de apresentar o evangelho me fez voltar a pensar no poder das pontes de diálogo para a missão cristã. Voltarei a uns princípios para esse diálogo e sobre se é possível fazê-lo de uma maneira “legitimamente respeitosa” no próximo texto.

Nota:
1. Dostoiévski, Memórias do Subsolo, Ed. Paulicéia, p. 96.

03 outubro 2012

Entre a cruz e o Papa


En Tres Cruces
Upload feito originalmente por val ►
Escrevo da Bolívia, onde participo das celebrações dos 30 anos da “Comunidad Cristiana Universitária” (CCU), movimento irmão da ABU (Aliança Bíblica Universitária) no Brasil. Três décadas buscando viver e levar a mensagem do evangelho de Cristo no mundo estudantil boliviano. O Brasil se alegra por fazer parte dessa história, já que um pioneiro de CCU conheceu ao Senhor através do movimento estudantil em Minas Gerais.

Entre as várias atividades por aqui, um desafio especial. Falar na universidade em La Paz sobre o tema: “Pluralidade e Relativismo”. Em tempos de islamofobia e islamofanatismo, entre outras fobias e fanatismos que padecemos no mundo, a tarefa fica mais difícil. Cresce a opinião em diversos setores que a causa da violência, ou uma de suas principais causas, seja a religião.

Os argumentos utilizados passam pela percepção de que as religiões, em especial as monoteístas, com suas afirmações exclusivistas, ou são cúmplices com a violência ou diretamente a incitam porque provocam um abismo de confrontação entre “nós” (os que creem no único Deus verdadeiro) e os “outros”, os infiéis, os renegados.

Seria o monoteísmo o pai dessa criança, a violência? Seria a fé cristã parte dessa paternidade maldita? Pareceria que sim, vendo os maus exemplos facilmente encontrados hoje no mundo, mas por outro lado o politeísmo ou o ateísmo, entre outros ismos, também podem gerar divisão, exclusão e violência, como é possível constatar na história.

Como cristão, eu diria que parte do que devo fazer é um “mea culpa”, revisando a atitude com que minha fé ocupa o espaço público, em especial no diálogo com outras crenças e ideologias. A tarefa pode começar dentro de casa, reconsiderando como interagimos dentro de nossas próprias tradições cristãs.

Recordo um episódio recente da história uruguaia, como um exemplo que me parece emblemático. O episódio tem 30 metros de altura, toneladas de ferro e pode ser visto em um lugar público, bastante visível e central em Montevidéu. Trata-se da cruz erguida para a missa celebrada pelo Papa João Paulo II em 1987 e posteriormente instalada ali permanentemente como um marco daquela visita.

Ela se instalou não sem um longo debate público nos jornais e no Parlamento1. Depois houve outro debate, dessa vez em 2005, quando evangélicos pediram a remoção de uma estátua do Papa João Paulo II, instalada mais tarde aos pés da cruz, após a morte do Papa. Em carta enviada por setores da igreja evangélica uruguaia ao presidente da República, a crítica veemente à estátua buscou estar baseada na característica laica do estado uruguaio:

"Estamos em um Estado laico, a partir do qual não podemos deixar de manifestar nossa discordância com o ocorrido [a instalação da estátua], considerando-a uma violação do espírito de respeito no marco da ‘laicidade’ em que queremos viver todos os uruguaios e uruguaias. Os símbolos religiosos, fora das instalações de suas próprias igrejas ou instituições e em locais públicos, atentam contra a liberdade de consciência e a ‘laicidade’ do Estado, minando de maneira sutil mas profunda a convivência social ".2

Deixo a palavra “laicidade” seguindo o espanhol “laicidad”, porque traduzi-la como “secularismo” ou simplesmente como “separação entre Igreja e Estado” não comunicariam a força com que ela é utilizada no Uruguai.

É interessante ver que a referida carta busca logo em seguida defender a cruz ali instalada como uma expressão representativa de todo o cristianismo. Isso nos deixa numa situação difícil. Não só a estátua, mas também a cruz seria um alvo legítimo da mesma lógica. A outra possibilidade seria a de ler o documento com a suspeita de que a motivação básica foi a de um conflito religioso, em que cada tradição da fé cristã busca ocupar os espaços públicos, e nessa perspectiva o argumento da defesa da “laicidade” carece de credibilidade.

Se cristãos evangélicos e católicos não se entendem, quem poderia nos ajudar? Talvez um senador agnóstico, que mais tarde seria presidente do Uruguai. Suas palavras, que aparecem nos registros do debate que teve lugar no Parlamento em 1987 sobre a permanência da cruz, foram avaliadas assim:

"Foi fundamental para o debate o discurso de um senador [...] fundamentando a necessidade de viver uma nova forma de ‘laicidade’, não de negação e de combate, mas de respeito às ‘coisas do espírito’ que deveriam voltar a ter uma importância primordial na vida das pessoas.”3

Ser mais tolerantes e respeitosos quanto às expressões públicas de espiritualidade, pode ser uma boa lição que se aprende. No Uruguai precisou vir de um “não religioso”. Seria então um argumento mais para defender que todas as religiões deveriam deixar de existir? Creio que não. A violência, inclusive a verbal, essa é que deve acabar, quer a encontremos no diálogo entre religiosos e não religiosos, quer ela apareça dentro do próprio arraial de fiéis.

Já tomei uma decisão sobre como abordarei o tema na palestra aqui na Bolívia. Não advogarei menos fé no mundo como antídoto para a violência e sim mais fé. Fé que convida ao diálogo, à tolerância e à missão com um profundo sentido de respeito pelo outro. Sim, acredito que tolerância rima com evangelismo respeitoso, mas não tenho mais espaço para explicar isso agora. Então faça o seguinte, peço-lhe o favor. Seja tolerante comigo e nos vemos no próximo artigo.
Notas:
1. Episódio narrado pelo sociólogo Nestor da Costa, em um interessante livro: “Religión y Sociedad en el Uruguay del siglo XXI – un estudio de la religiosidad en Montevideo”, Da Costa, Néstor, CLAEH, CUM, 2003, 200 p.

2. Bolioli, Oscar e Ihle, Armin, Carta enviada pela FIEU ao Sr. Presidente da República, Dr. Tabaré Vázquez, em 25 de abril de 2005.

3. Em Da Costa, Id., p. 73.