20 novembro 2007

Visões laicas


Você já deve saber que o Uruguai é um país laico. O que muitos não sabem é que esse é um processo que remonta à gênese da identidade do país, no final do século XIX e início do século XX.

Essa gestação da identidade nacional ocorreu não sem tensões e lutas, na administração de cemitérios e hospitais, na educação e registro civil, na formação das leis do país (uma lei aprovando o divórcio, considerando a vontade da mulher ao pedí-lo, data de 1907!) e em confrontações públicas, às vezes hilárias, se não fossem desrespeitosas...

Na década de 20 do século passado, anúncios colocados nos principais jornais do país convidavam a população a churrascos grátis, ao ar livre. O detalhe geográfico e temporal impressiona. A carne era assada na praça em frente à catedral, justo na sexta-feira santa. A fumaça da gordura racionalista da época penetrava nos vãos do templo barroco e enlouquecia igualmente a clérigos e ovelhas (aquelas ironicamente chamadas pela igreja de “leigos”, do latim
laicu, numa triste e irônica coincidência…ou não…).

Atrás das churrasqueiras estava uma elite intelectual e política que bebeu em sua formação do liberalismo e positivismo francês, além da maçonaria, e que estava em aberta luta contra o poder da Igreja Romana. Histórias interessantes às quais voltarei em momento oportuno.

Por agora, queria lhe deixar um excerto do saudoso Norberto Bobbio a respeito da diferença entre uma visão religiosa do mundo e da história, distinta de uma visão de mundo laica. Que seriam essas visões laicas da realidade? Para conhecer o outro, nada melhor do que deixar ele mesmo se apresentar e falar de si. Deixo-lhe então com o Norberto. Desculpe-me o texto longo. Como da
última vez você desligou a máquina e descansou os olhos, imagino que deva estar mais disposto agora. Boa leitura e até a próxima!

“Para dizer a verdade, mais que de uma ética laica, deveríamos falar de uma visão laica do mundo e da história, distinta de uma visão religiosa. Pode-se também falar, com uma linguagem compreensível por todos, de distinção entre uma concepção sagrada e uma concepção profana ou desconsagrada, ou ainda, como se prefere dizer hoje, dessacralizada do mundo e da história, distinção que teria tido sua origem no início da era moderna, no período weberianamente chamado de ‘desencantamento’.

Segundo o cristão, ao lado da história profana existe uma história sagrada, da qual o único guia seguro é a Igreja ou as diversas igrejas que retiram sua inspiração das Sagradas Escrituras.

Para o laico, a história é uma só, e é a história em que estamos imersos, com nossas dúvidas não resolvidas e com as nossas questões inelimináveis, cujo guia é a nossa razão, de modo algum infalível, que extrai da experiência os dados a partir dos quais se pode refletir.

Esta é uma história por detrás da qual e acima da qual não há nenhuma outra história da qual esta nossa história seria apenas uma prefiguração imperfeita, um reflexo infiel ou mesmo enganoso.

Na visão do laico, falta a dimensão da esperança em um resgate final, em uma redenção, em uma palingênese, numa palavra, na salvação. Não pode haver salvação numa visão do mundo em que não existe sequer a idéia de uma culpa originária, que teria maculado para sempre toda a humanidade desde a origem e ao longo dos séculos.

Para o laico, a história não se desenrola segundo um percurso predeterminado, e já traçado desde o início, entre uma culpa original e uma redenção final. É uma história de eventos de que se pode, ainda que nem sempre, encontrar a concatenação das causas, mas em que não se pode chegar à atribuição de culpas.

É uma história da qual é inútil procurar um sentido último, porque um sentido último não existe ou ainda não se revelou de modo claro o suficiente para nos levar à aprovação.”

Norberto Bobbio, em Elogio da serenidade e outros escritos morais, UNESP, 2002.

Foto: Palácio Legislativo, Montevidéu- Legislación
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