03 dezembro 2007

O tango e o chapéu do Gerardo

Gerardo tinha duas paixões na vida. Minto, três. Quase ia me esquecendo do chapéu. Comecemos então com essa, antes de falar das outras duas.

Becho, como Gerardo era conhecido, sonhava em ter um chapéu igual àquele que viu seu pai usar, um sóbrio chapéu côco feito de feltro de pêlo de lebre, um clássico do fim do século XIX e início do século XX.

Não tinha ainda 20 anos, mas também já sonhava em projetar um arranha-céus, uma novidade ousada na América do Sul de sua época. Essa era a segunda paixão desse estudante do curso de Arquitetura, da saudosa “Faculdade de Matemáticas”.

Era o ano de 1916, e chegamos à terceira (ou seria a primeira?) paixão de Gerardo, a música. Foi assim. O tímido Becho viu o piano do grêmio estudantil vazio. Aproximou-se, tomou assento e de uma vez compôs aquela marcha. Imaginava que seus amigos, do grupo estudantil conhecido como “La Cumparsa”, gostariam de usá-la no carnaval.

Um ano depois, uma orquestra a tocava pela primeira vez no café “La Giralda”, bem onde foi erigido alguns anos mais tarde (1925) o majestoso Palácio Salvo, com suas linhas exóticas e controversas. Ironias do destino para o jovem músico que nunca chegou a formar-se arquiteto.

Gerardo não tinha idéia do que sucederia com o correr do tempo. Em inúmeras gravações e versões, “La Cumparsita” tornou-se o tango mais famoso e tocado de todos os tempos. O Becho tampouco vislumbrava esse futuro. Talvez por isso tenha vendido os direitos da obra para a editorial Breyer, de Buenos Aires. Arrependido, depois lutou para recuperá-la.

O que se passou então foi uma longa disputa pelos direitos autorais, agravada pelas múltiplas versões do tango. Talvez um consolo para o Becho tenha sido a amizade que fez com o Carlos. Por causa dela Gerardo foi chamado a musicalizar o filme “Luces de Buenos Aires”, cujas canções se imortalizaram na voz potente de seu amigo. Inesquecível a voz do Carlos, o Gardel, esse uruguaio de Tacuarembó que até hoje dizem ser argentino ou francês, vai entender...

Anos mais tarde, em abril de 1948, Gerardo lutava contra uma penosa enfermidade. Surpreendeu-se então, naquela tarde de repouso forçado, com a chegada de uma encomenda trazida pela “Dirección Nacional de Correos”: uma atraente caixa de papelão ovalada, decorada com fotos de cartões-postais do Rio de Janeiro.

No cartão, escrito em Português, lia-se:“do admirador de sua música, Remígio Fernandes Braga – Chapéus Mangueira”. Poucos dias depois Gerardo se foi. Uma nota em seu bolso dizia "Levo o Mangueira comigo". Talvez pensasse que deveria estar elegante em uma possível audição celestial de sua mais famosa criação.

[Remígio Fernandes Braga foi o avô de minha esposa. Neto de um dos fundadores dos saudosos Chapéus Mangueira, foi Diretor Técnico da fábrica por muitos anos. Tinha por costume enviar chapéus para amigos e missionários ao redor do mundo. Nunca soube se o seu Braga gostava de tango, mas pensei que seria uma singela homenagem à sua memória.
Se o encontro do chapéu com o Gerardo nesse artigo é ficção, os outros detalhes da história são, no geral, verdadeiros.
Um dos pontos altos desse ano foi assistir no Teatro Solís às celebrações dos 90 anos do tango “La Cumparsita”, composto pelo uruguaio Gerardo Matos Rodríguez.]

Foto: - palacio salvo -
Upload feito originalmente por Cecilia Brum

Ouça "La Cumparsita":




Cena de "Luces de Buenos Aires", musicalizado por Gerardo Matos Rodríguez e estrelado por Carlos Gardel:

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