30 novembro 2007

Diga-me onde moras... 2



Abrimos a porta ao mesmo tempo. Do outro lado do hall, o sorriso largo do vizinho me cumprimentou.

Don Héctor, exclamei.

— Como passas, Ricardo? Sabes que li teu último post no blog?

Don Héctor é um tipo deveras simpático. Grisalho, sempre impecável em seu alinhado terno. Costuma esperar ansioso pelos domingos de sol para desfilar com sua senhora em sua beleza de moto pela rambla* montevideana.

Hoje ele me surpreendeu. Não tinha o que lhe dizer. Como ele sabia que eu escrevia em um blog? Não há mais privacidade nessa vida?

— Interessante isso sobre o lugar em que a gente mora... — prosseguiu.

Esse negócio de Internet é algo mesmo muito devassado. Ele havia lido de verdade! Que disparate! É só colocar na rede que qualquer um acha. Não que meu amigo fosse qualquer um, muito pelo contrário.

— Você não acha que a gente vive bem confortável aqui? — interrompeu meus devaneios.

Estava confuso, intimidado. Olhei para a escada, mas logo desanimei. Dez pisos, mais dois até o subsolo...

— Penso que foi um bom ponto, mas tenho minhas dúvidas — continuou.

Por que o elevador demorava tanto a chegar? Logo hoje? Não que Don Héctor fosse alguém desagradável. Longe disso! É que eu me incomodava por não conseguir concatenar 2 palavras na “conversa”.

— Um tipo pode morar bem, o outro morar mal, mas o dado mais importante para mim é o da perspectiva e da visão da realidade — filosofou.

Os dois apitos agudos avisaram que o elevador havia chegado. Suspirei quase aliviado. Durou pouco. Quando a porta se fechou, foi como se houvesse ganhado nova força em seu argumento. Inclinou a cabeça, pôs uma mão em meu ombro, e vibrando o dedo indicador da outra a uma distância não muito segura do meu nariz, continuou.

— O que mais me chamou a atenção na história foi a maneira positiva com que a "geografia da pobreza" ajudou a Maria a ter uma abordagem distinta, integral em sua missão, ainda que sua teologia apontasse em outra direção.

Por que nunca havia discutido teologia com don Héctor? Por que o mostrador passava os números dos andares em câmera lenta?

— E o Carlos, ora, o Carlos para mim é o seguinte.

Apertou meu ombro. Encolhi um pouco.

— Para mim não adianta discurso e retórica, quando meus olhos não vêem e meu nariz não cheira, sabe?

Sabia é que nunca havia demorado tanto para chegar ao térreo. Seria minha salvação. Lá ele descia.

— A geografia não determina quem sou!

Será que eu disse isso? Olha, já vai passando no 4.

— Mas que ela influencia, ah, isso sim, influencia. Se isso me servir de alerta, ótimo, agradeço o seu alerta.

Era pra alertar alguém? Já está no 2.

— Não quero ficar condicionado à minha geografia, cultura ou educação!

Um, chegou! Ia saindo, voltou, barrou a porta e quase me desafiou:

— Se a gente se recolhe ao no nosso mundinho confortável, aqui, bem aqui, a gente encalha, a gente encolhe, fica míope. Não sente, não vê, não age para mudar o mundo lá fora.

Acho que fiz que sim com a cabeça, nem sabia que queria mudar tanta coisa...

— Nos vemos na próxima!

“Tá”, disse meio pra dentro. Desci ao subsolo. Falar o quê? Não sei bem o que dizer na “próxima”. Acho que vou convidar meu vizinho pra escrever no blog.

* avenida costeira

Foto: Ascensor
Upload feito originalmente por Mor (bcnbits)

4 comentários:

Gustavo disse...

Saludos Ricardo. Me alegro de haber encontrado tu blog y tener noticias de tí. Permiteme agregarte como link de mi propio blog.
Muchas bendiciones para tí y tu familia en Uruguay.
PD. Mañana es mi matrimonio!!!

Gustavo

Anônimo disse...

Ricardo, muito bom! Senti na pele a sua angústia para sair do elevador.
A gente nunca sabe onde nossas palavras vão parar, especialmente as escritas....

Unknown disse...

Pois é, Filla...
Cuidado com o que escreve!
Forte abraço.

Anônimo disse...

Oi, Ricardo!

Engraçado como, na vida, falamos certas coisas que nem a gente mesmo entende (pelo menos na hora). Esses dias eu tava pensando em Pedro e na sua pregação no dia de Pentecostes. Ele cita Joel e diz que aquela "novidade" é sobre "toda a carne". Mas ele mesmo, depois, precisa ter os olhos abertos pra perceber que o evangelho não era só pros judeus. Estranho, né?

Sei lá, mas eu tenho achado que a vida da gente é essa estranheza. A gente pensa, fala, escreve coisas que nem vive ainda... mas Deus já está mexendo em alguma coisa dentro da gente. Depois é que a ficha cai... e aquilo que a gente pensou, falou, escreveu, assume um significado muito mais profundo. Traços da Graça...

Como disse o Patrick outro dia, seu blog agora é passagem obrigatória.

Grande abraço!