05 abril 2008

Especialistas

Uma amiga uruguaia me fez a seguinte pergunta outro dia: “Ricardo, você que é um especialista em Bíblia, saberia me dizer qual foi o meio de transporte que Noemi e Rute usaram em sua viagem a Palestina?”

Demorei alguns segundos para tentar engatar uma resposta. Não tanto pela minha assumida falta de conhecimento acerca dos meios de transporte no Meio Oriente do século XI ou XII a. C., e sim por ficar pensando na palavra que ela usou para referir-se a mim, “especialista”.


Junto com a surpresa veio rápido à minha mente que poderia ter sido eu mesmo o culpado pela disseminação
de tal propaganda enganosa. Devo ter irresponsavelmente incluído essa expressão em algum breve currículo de minha curta vida acadêmica ou usado-a em alguma apresentação pessoal onde tenha desejado melhorar o verniz de minha imagem pública.

Suei frio. Seria eu um especialista? Imagino que não. Desejaria ser um? Daí comecei a titubear.


Imagino que muita gente que se dispõe a dar conferências, escrever um livro, um artigo ou uma série de artigos, por exemplo, em um blog (qualquer semelhança com o que você vê aqui não é casual coincidência), possivelmente se trata de alguém que se vê como “especialista” em um tema e assim se dispõe a “ensinar” a outros.


Desculpem-me por esse público exercício de autocrítica, mas inclusive pretendo ampliar o escopo desse crivo crítico.


Suspeito que uma comunidade que Jesus modelou não deveria ser composta por “especialistas”. Há um interessante comentário naquele livro que lhes recomendei ler tempos atrás (“Que tal ler um livro?”), que fala do “compromisso radical dos Anabatistas com a crença de que em todos os cristãos, independente de educação ou profissão, habita o Espírito Santo e assim legitimamente todos podem e devem interpretar a Bíblia. [Para eles] Não há o pressuposto de que os acadêmicos [ou ‘scholars’, ou ‘especialistas’] deveriam ter a última palavra em matérias de fé e vida.”1


Junto à ela há também outra provocativa citação de um autor Menonita, Thomas Finger, dizendo que “a imersão em livros nos rouba tempo dos atos de misericórdia”.


São palavras que devem ser lidas em seu contexto, e que as entendo como também proferidas contra mim, que aqui estou escrevendo um artigo e recomendando livros no mesmo momento em que supostamente poderia estar exercendo misericórdia para com meu vizinho. Meu consolo, se é que há algum, está no fato de que apenas posso receber essa exortação do Thomas, contrária à especialização mais “acadêmica” ou “teológica”, porque ele também escreveu isso em algum lugar e eu, por minha vez, investi tempo e energia para lê-lo.


Fecho a digressão para concordar que o melhor seria se não tivéssemos tantos especialistas. Ou que então todos fôssemos “especialistas”, em uma óbvia e irônica contradição. Talvez necessária, para denunciar os modelos de dependência de alguns poucos e para encorajar uma interpretação da Palavra mais comunitária. Também para que tivéssemos mais livros (ou blogs) escritos por várias mãos, mais dinâmicas de formação e aprendizado que privilegiem o protagonismo daquele que aprende, mais trabalho em equipe, mais confiança na cooperação de muitos do que no estrelismo de poucos.


Qual seria então o papel reservado aos chamados líderes e mestres? Que seria desejável ou recomendável para as pessoas que estão, por diferentes razões, em posições onde influenciam a outros?


Parecem-me boas perguntas, mas a autocrítica a que me propus me inibe, ao menos por agora, de tentar respondê-las. Apenas peço-lhe socorro quanto à primeira pergunta desse artigo. Quem sabe você me ajuda a salvar minha reputação, se é que essa seja uma ação louvável depois do que conversamos por aqui. Até a próxima, a cavalo, camelo, burrinho, ou à pé mesmo.


1
“Exploring Protestant Traditions, an invitation to theological hospitality”, de W. David Buschart (IVP, 2006), p. 71.

Foto: © Ivon Ruiz

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