O articulista de um grande jornal lê os e-mails que lhe são enviados? Talvez sim, talvez não. Um assessor deve fazer a triagem. Algo assim: “insultos”, não; “elogios”, sim; “respostas coerentes”, sim; “devaneios”, não; uma “discordância, mas que contribui ao tema”, sim; “idéias diferentes, baseadas em outros paradigmas e modos de pensar”, hmmm, talvez...
Bem, não importa, e nem sei em que categoria caiu a mensagem que resolvi escrever ao articulista da Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman, após ler as duas colunas que ele escreveu sob o tema ciência e fé ( “Ciência sob ataque” e “A fé na ciência”).
Em minha humilde missiva, busquei não entrar no mérito específico dos casos que ele menciona (Ministra Marina Silva e neurocientistas). Mas tentei reagir ao que me pareceu sua percepção geral negativa acerca da religião e de quem é religioso. Aqui está:
“Caro Hélio,
Obrigado por suas duas últimas colunas. Digo o óbvio: são esclarecedoras e levantam questões bem interessantes.
Tomo a liberdade de lhe escrever para dizer-lhe que concordo com quase tudo.
Apenas fiquei com uma percepção geral negativa do seu texto acerca da religião ou acerca de quem se identifique como religioso. Uma impressão de que esses em geral seriam identificados com o obscurantismo, mandingas e fogueiras. E acredito que essa percepção não seria justa com seu pensamento.
Falo de um ponto de vista parcial e comprometido. Amo a ciência, como engenheiro que sou, e pessoalmente sou adepto do ramo protestante da fé cristã.
Eu poderia citar-lhe avanços importantes na história da humanidade, na preservação de direitos e em lutas contra injustiças, levadas a cabo por pessoas ou grupos com inspiração religiosa. Mas desisti dessa linha de argumentação. A cada caso positivo que eu pudesse mencionar, você, ou eu mesmo, poderíamos apresentar outros 10 negativos. Talvez essa seja uma das características da paixão religiosa. Ela tem o poder para inspirar absolutamente para o bem e também para o mal.
Então pensei em dizer outra coisa. Trata-se de algo sobre a interessante tese de Hooykas, exposta em seu livro "A religião e o desenvolvimento da ciência moderna", publicado pela Editora Universidade de Brasília, em 1988. Ele defende a idéia de que concepções gregas e bíblicas recuperadas pelo movimento protestante na Europa dos séculos XVI e XVII, prepararam a mudança de atitude e de visão de mundo necessárias para o desenvolvimento da ciência moderna.
Um dos princípios da Reforma Protestante, enunciado por Calvino, e citado por Hooykas, dizia: "se acreditamos que o Espírito de Deus é a única fonte da verdade, não podemos rejeitar ou desprezar a verdade, onde quer que ela se revele, sob pena de ofendermos o Espírito de Deus" (p. 152 do referido livro). Ele dizia isso em um contexto onde defendia que autores bíblicos, como Moisés, descreviam realidades de uma maneira popular, de maneira que pessoas de bom-senso em sua época pudessem compreender. E defendia os astrônomos de sua época, que iam contra a astronomia aristotélica abraçada pela Igreja, investigando tudo o que a perspicácia da mente humana podia penetrar. Assim, as "verdades" que esses astrônomos descobrissem, mesmo sendo descobertas por "pagãos", deveriam ser aceitas porque senão essa recusa ofenderia o próprio Deus, que havia criado essas "verdades".
Pessoalmente, eu posso acreditar que "Deus criou o mundo", sem precisar querer definir como isso possa ter acontecido. Ou seja, posso me alegrar com as "verdades" desse processo que a ciência vai descobrindo, mesmo que sejam "provisórias" e abertas à revisão pela própria comunidade científica.
Outros pensarão diferente a esse respeito. Não desejarei por isso enviá-los à fogueira ou ao inferno. É possível que eu seja parte de uma minoria. Mas isso não me impedirá de continuar buscando pontes de compreensão e entendimento.
Caro Hélio, continue escrevendo seus bons artigos.
Grato,
Ricardo”
Será que o assessor a colocou na pasta “leia mais tarde”? Ou teria o botão delete impedido qualquer aspiração de comunicação entre visões de mundo supostamente opostas? Pelo menos tive o prazer de me manifestar. E esse gosto vale qualquer risco de ser ignorado.
Foto: © Newsreader
Upload feito originalmente por Richard Forward
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