A maioria dos diretores de companhias que oferecem serviços para encontros e possíveis namoros através da internet reconhecem que o aumento da oferta desse tipo de ferramenta certamente virá acompanhada de uma diminuição do compromisso nas relações entre casais. Um diretor de um serviço baseado no Reino Unido entrevistado pela revista “The Atlantic” de fevereiro, afirma que “o futuro verá melhores relacionamentos, mas também mais divórcios”. Alguns desses diretores afirmam inclusive que ao colocarem pessoas interessantes em contato umas com as outras, essa “oferta” fará com que o casamento se torne obsoleto.
Outros sugerem que muitas pessoas se inclinariam a romper relacionamentos atuais influenciadas pela noção de que há literalmente um mundo de oportunidades e alternativas lá fora. A comunicação e a conexão com tanta gente de tantos lugares levaria a uma diminuição do esforço e do compromisso em direção a uniões mais duradouras.
De todos os executivos envolvidos com esse tipo de serviço na internet entrevistados para um livro lançado recentemente1, somente um discordou da visão de que esse empreendimento levaria a uma diminuição dos compromissos e a um aumento dos divórcios. Para esse, um serviço de namoros online não muda o comportamento de cada indivíduo, os seus interesses, se é um tipo que só busca relações fortuitas ou se busca uma relação duradoura. “Encontrar o seu par pela Internet é um serviço que nada mais faz do que remover uma barreira para que esse encontro suceda”. O resto teria a ver com a personalidade e as escolhas de cada um, e isso independe do serviço brindado por sua companhia.
Fiquei pensando nessa única voz discordante da ideia de que os serviços de encontros on line seriam os grandes vilões da história. Sei que possivelmente sua real intenção seja apenas a de proteger a reputação de seu negócio, numa jogada defensiva. Mas ainda que sua preocupação seja somente monetária, pensemos por um momento se ele não teria razão em sugerir que cada um é responsável pelo que faz, sejam quais forem as circunstâncias.
“Conheci tanta gente interessante lá!” E esse “lá” pode ser uma viagem, um curso, um novo ambiente de trabalho, ou os famigerados serviços que arranjam encontros pela rede. “Só depois de 20 anos de casado é que vim a descobrir a paixão de minha vida!” Sim, é bastante possível que quanto mais o tempo passe, mais gente interessante você venha a conhecer. Mas, sob todos os aspectos, a vida é feita de decisões que você toma a cada dia. Podem ser pequenas ou grandes, mas desconfio que justamente esses detalhes das escolhas diárias, aparentemente sem tanta importância, os que mais diferença trarão ao longo prazo, na minha vida ou em minha relação a dois.
Ou seja, eu não posso, com o risco de ser profundamente desonesto, transferir a culpa para situações externas do contexto. Sabe aquela manchete de jornal: “Chuva mata cinco pessoas em um acidente na Dutra”? Depois, ao ler a reportagem, você descobre que a precipitação pluviométrica estava longe de ser uma psicopata assassina em série. Ainda que forte, a chuva muitas vezes é somente o contexto em que um motorista imprudente conduz acima da velocidade de segurança para aquelas condições. Sua imprudência os matou, não a chuva.
Faz já um tempo que li no "El País"2 uma reportagem sobre a suposta “descoberta” dos “genes do adultério”. Um certo alelo 334 levaria a uma propensão à busca contínua por novos parceiros sexuais. “Desculpe aí, querida, foram os meus genes”. Varões, tremei (ou alegrem-se, dependendo de sua disposição moral e espiritual), pois dois homens em cada cinco teriam o gene ou a variante do alelo que os levaria à infidelidade sexual e à poligamia. Menos mal que uma pesquisadora entrevistada para a mesma matéria tenha saído para aclarar que o tal gene não seria em si um argumento sólido para justificar a infidelidade: “Sabendo que há pontos fracos em nosso sistema biológico, isso proporciona ao menos a possibilidade de buscar ajuda para superá-los. Um homem que tem esse gene em seu cérebro pode manejar ou utilizar seu conhecimento e caráter para fazer-lhe frente e resistir a essa inquietação que faz tremer o matrimônio ou a relação do casal.” Também acrescentou: “O alelo 334 pode ser relativamente dominado, é como o caso do alcoólatra que se casa e se controla ou cura o seu vício”.
Voltemos ao tema dos serviços de namoro online e os divórcios que supostamente crescem por sua causa. Não me coloco em posição para julgar a ninguém que tenha passado pelas tragédias da infidelidade e do divórcio. Não as desejo para ninguém e busco ser empático e apoio àqueles que sofreram (ou sofrem!) por conta delas. Tampouco minha intenção aqui é falar mal dos serviços de busca de um par pela Internet (tenho bons amigos que aí encontraram o seu cônjuge), nem é a de ser um ludita que desmereça o potencial para o bem das redes sociais ou de outras tecnologias. É importante entender bem os desafios de cada época e contexto, e não sermos ingênuos para enfrentá-los de forma correta. Também não devo recusar-me a crescer e a amadurecer. Antes o alvo é ser responsável, reconhecer meus limites e buscar ajuda quando necessário. Ou seja, sempre. Não dá para viver sem mentores, amigos e referentes.
Ouvi recentemente que o problema das redes sociais ou de outras tecnologias é que elas criam oportunidades que antes não existiam. Com mais possibilidades, pecariam mais. Ora, se essa lógica estiver certa e se eu não peco só “porque não tive oportunidade”, sou o mais infeliz e medíocre dos pecadores. Porque nesse caso meu ser já estaria tomado por essa covardia vil e débil que se esconde detrás de uma aparente capa de santidade. Deus me livre do momento em que essas “oportunidades” supostamente “aparecerem” sem que eu busque estar preparado.
Minha oração na verdade deveria ser: “Senhor, tem misericórdia de mim, porque o pecado não está lá fora, na multidão de oportunidades e de contextos ameaçadores, mas está bem aqui, dentro de mim. Sou pecador, e por isso preciso do único Santo, o Senhor. Débil sou, mas em ti forte serei.” Não serão Facebook, serviços de encontros on line ou genes engraçadinhos que irão ocupar o protagonismo que cabe somente a um pecador que busca aquele que, levando-me pela mão, pode salvar-me e conduzir-me pelo bom caminho. Cuidado, que essa é uma decisão para cada dia.
Notas:
1. Dan Slater, Love in the Time of Algorithms: What Technology Does to Meeting and Mating, Penguin Group, 2013.
2. Hallaron el gen de la infidelidad masculina, 7 de setembro 2008, El País, Uruguay.
O Sul é meu Norte
Confissões de um missionário urbano transcultural...
19 fevereiro 2013
28 janeiro 2013
Dez em vinte
Compartilho aqui algumas lições aprendidas nos vinte anos de ministério estudantil(1) completados no início desse ano. Não foi rápido nem fácil aprendê-las. Mas espero que esse breve resumo possa ser útil aos que talvez estejam iniciando uma vida de serviço ao Senhor:
1. É preciso ter mentores. Sempre devemos ter pessoas de referência que nos ajudem no caminho. É essencial prestar contas. Ser pastoreado e cuidado são requisitos obrigatórios para quem quer pastorear e cuidar.
2. É preciso trabalhar em equipe. O que é guiado por estrelismo não gera um ministério sadio; pelo contrário, alimenta a vaidade. Necessito de um ambiente de equipe para trabalhar. E quanto mais capacitados forem os membros de minha equipe, melhor. Ganho mais quando me cerco de pessoas mais inteligentes e capazes do que eu. Temê-las seria minha fraqueza e uma receita para a mediocridade.
3. É preciso ter amigos no caminho. Relações no ministério não devem ser apenas relações formais e profissionais. Dou o melhor de mim quando tenho ao meu lado pessoas em quem confio e que confiam em mim. Afeto, amizade, transparência e cuidado mútuo rimam com um ministério frutífero e saudável.
4. Devo tomar cuidado com os elogios que me fazem. Podem ser reais, merecidos ou exagerados. Não importa o que de fato são. Se acredito em todas as coisas boas que dizem a meu respeito, e se me acomodo na ilusão dessas projeções, a tentação será grande, e o abismo que o segue maior ainda.
5. As críticas servem para crescer. Devo prestar atenção em todas as críticas que me fazem. Elas me ajudam a crescer, a manter um espírito humilde e a cultivar uma atitude disposta para a revisão e correção.
6. As críticas não são o foco principal de minha motivação. Não devo prestar atenção em todas as críticas que me fazem. Se fico obcecado com elas, ou se procuro atender a agenda de todos, é quase certo que perderei o foco principal daquilo a que sou chamado para fazer.
7. Consenso é sempre melhor que votação. Quando há dissensão, não há melhor remédio do que o diálogo e a construção comunitária de um consenso. É melhor conversar, orar, esperar, voltar a dialogar do que precipitar-se e provocar uma divisão e feridas difíceis de serem curadas.
8. Se errar é comum, reconhecer o erro também deveria sê-lo. Não só imagine que você talvez possa errar. Você vai errar! Mas o que fazemos após o erro é sempre a parte mais importante. O melhor é sempre admitir o erro, assumir responsabilidade e estar disposto a voltar atrás ou a reparar o erro, se estiver ao seu alcance.
9. Trabalhar é bom, mas não com o sacrifício da família. Se você não tem prazer algum no seu trabalho, avalie se é possível redirecionar o foco e o rumo daquilo que você faz. Mas se você ama o que faz, ou é pressionado no trabalho com demandas extras e pouco realistas, nessas duas situações há riscos. Porque em ambas é necessário cuidar-se para não se dedicar ao trabalho de tal modo que sacrifique o tesouro mais precioso que Deus lhe deu: sua família e seus amigos.
10. Aprender e continuar crescendo são metas para toda a vida. Pense sempre em como você pode continuar realizando sua vocação de maneira melhor do que a realiza hoje. Prepare-se, busque novos desafios, aperfeiçoe os talentos que você já tem e encare a aventura de buscar desenvolver novas capacidades. A acomodação o leva à morte, sendo que gratidão, humildade e iniciativa são chaves que nos abrem portas para as novas etapas da vida.
Celebro esses vinte anos buscando aplicar essas dez lições em minha vida e vocação. Espero que com sua ajuda eu possa aprender tantas outras mais para os próximos anos.
Nota
1. Felizes anos de trabalho na Aliança Bíblica Universitária (ABU), na Comunidad Bíblica Universitaria (CBU Uruguai) e na Comunidade Internacional de Estudiantes Evangélicos (CIEE/IFES).
1. É preciso ter mentores. Sempre devemos ter pessoas de referência que nos ajudem no caminho. É essencial prestar contas. Ser pastoreado e cuidado são requisitos obrigatórios para quem quer pastorear e cuidar.
2. É preciso trabalhar em equipe. O que é guiado por estrelismo não gera um ministério sadio; pelo contrário, alimenta a vaidade. Necessito de um ambiente de equipe para trabalhar. E quanto mais capacitados forem os membros de minha equipe, melhor. Ganho mais quando me cerco de pessoas mais inteligentes e capazes do que eu. Temê-las seria minha fraqueza e uma receita para a mediocridade.
3. É preciso ter amigos no caminho. Relações no ministério não devem ser apenas relações formais e profissionais. Dou o melhor de mim quando tenho ao meu lado pessoas em quem confio e que confiam em mim. Afeto, amizade, transparência e cuidado mútuo rimam com um ministério frutífero e saudável.
4. Devo tomar cuidado com os elogios que me fazem. Podem ser reais, merecidos ou exagerados. Não importa o que de fato são. Se acredito em todas as coisas boas que dizem a meu respeito, e se me acomodo na ilusão dessas projeções, a tentação será grande, e o abismo que o segue maior ainda.
5. As críticas servem para crescer. Devo prestar atenção em todas as críticas que me fazem. Elas me ajudam a crescer, a manter um espírito humilde e a cultivar uma atitude disposta para a revisão e correção.
6. As críticas não são o foco principal de minha motivação. Não devo prestar atenção em todas as críticas que me fazem. Se fico obcecado com elas, ou se procuro atender a agenda de todos, é quase certo que perderei o foco principal daquilo a que sou chamado para fazer.
7. Consenso é sempre melhor que votação. Quando há dissensão, não há melhor remédio do que o diálogo e a construção comunitária de um consenso. É melhor conversar, orar, esperar, voltar a dialogar do que precipitar-se e provocar uma divisão e feridas difíceis de serem curadas.
8. Se errar é comum, reconhecer o erro também deveria sê-lo. Não só imagine que você talvez possa errar. Você vai errar! Mas o que fazemos após o erro é sempre a parte mais importante. O melhor é sempre admitir o erro, assumir responsabilidade e estar disposto a voltar atrás ou a reparar o erro, se estiver ao seu alcance.
9. Trabalhar é bom, mas não com o sacrifício da família. Se você não tem prazer algum no seu trabalho, avalie se é possível redirecionar o foco e o rumo daquilo que você faz. Mas se você ama o que faz, ou é pressionado no trabalho com demandas extras e pouco realistas, nessas duas situações há riscos. Porque em ambas é necessário cuidar-se para não se dedicar ao trabalho de tal modo que sacrifique o tesouro mais precioso que Deus lhe deu: sua família e seus amigos.
10. Aprender e continuar crescendo são metas para toda a vida. Pense sempre em como você pode continuar realizando sua vocação de maneira melhor do que a realiza hoje. Prepare-se, busque novos desafios, aperfeiçoe os talentos que você já tem e encare a aventura de buscar desenvolver novas capacidades. A acomodação o leva à morte, sendo que gratidão, humildade e iniciativa são chaves que nos abrem portas para as novas etapas da vida.
Celebro esses vinte anos buscando aplicar essas dez lições em minha vida e vocação. Espero que com sua ajuda eu possa aprender tantas outras mais para os próximos anos.
Nota
1. Felizes anos de trabalho na Aliança Bíblica Universitária (ABU), na Comunidad Bíblica Universitaria (CBU Uruguai) e na Comunidade Internacional de Estudiantes Evangélicos (CIEE/IFES).
21 dezembro 2012
Quatro lições do Natal
Cada celebração do nascimento de Jesus nos renova a oportunidade de aprender ou reaprender algo sobre o evento que transformou a história. Pensemos rápido sobre quatro elementos desse acontecimento e que lições nos ensinam:
1. O Senhor move o que quiser e quem quiser para cumprir os seus propósitos. Com um decreto, César Augusto indicou que todos deveriam se registrar em sua própria cidade (Lc 2.1-5). Assim, uma jovem prestes a se tornar mãe e seu noivo se deslocaram até Belém. As multidões, os impérios e os poderosos que nos governam muitas vezes nos fazem sentir pequenos e impotentes. Mas o personagem maior sempre atua de maneira a inclinar-se em favor do pequenino, movendo as peças para que “cedo ou tarde” seus desígnios se cumpram.
Se isso é verdade então a pergunta é se estamos atentos ao que o Senhor já vem fazendo, para que sejamos agentes privilegiados da sua ação no mundo. Busque ao Senhor e discirna onde ele já vem atuando. Se a ação é dele (em paternidade, iniciativa e controle), então o que me resta fazer é somar-me a ela com espírito humilde e agradecido.
2. O caminho do Senhor nem sempre é o mais fácil nem o mais simples. Vejam que o Senhor que move as autoridades máximas de um império aparentemente não foi capaz de reservar um alojamento para esse casal em Belém (Lc 2.6-7). Perguntamos-nos se não seria possível que movesse o coração do dono de uma estalagem ou que incitasse uma família para que fosse hospitaleira com os pais daquele bebê que viria para mudar o rumo do universo. Claro que seria possível, mas não foi esse o roteiro escolhido pelo grande chefe.
Esse bebê, quando grande, também não transformaria pedras para saciar sua fome com pães, nem daria saltos no vazio para ser acariciado por anjos. Também alertaria os desavisados de que ele não teria lugar para repousar sua cabeça. Que sua vida não seria fácil, que segui-lo tampouco implicaria em regalias e garantias. Pelo contrário, que segui-lo demandaria renúncia e levaria cada um a carregar sua própria cruz. Ele se tornou pobre por amor, para que cada um de nós se tornasse rico (2 Co 8.9), ainda que essa riqueza seja de uma natureza distinta à da nossa percepção comum. A vida nesse caminho não é fácil nem simples, mas assim é melhor, porque se trata de uma riqueza muito mais profunda e verdadeira.
3. Ele veio para que todos tivessem vida. A visita dos magos (que não eram três nem reis) foi surpreendente. Vindos do Oriente, possivelmente eram inesperados mágicos e astrólogos de nações consideradas pagãs. Esta visita antecipou quem se beneficiaria com a chegada do Messias. Não só uma família, nem só um povo, nem mesmo qualquer outro grupo de pessoas criado artificialmente por nossas próprias regras e tradições humanas. Se uma vida especial nascia naquele pequenino, essa vida era desde o princípio ofertada a todas as pessoas, de todos os grupos, de todas as nações.
Foi o próprio evangelho de Mateus, considerado como o evangelho escrito aos judeus, que deixa bem claro no seu início (por meio dos visitantes especiais), e no seu final (com o grande mandato para fazer discípulos em todos os povos), que essa vida era e é um oferecimento a toda a humanidade. Se muitos não a abraçam, talvez a culpa seja daqueles que se pensam exclusivos detentores dessa bênção. Por isso devemos ser vasos conscientes de que o que temos foi porque recebemos. Portanto somos bons mordomos que transbordam a todos os demais algo que não chegamos a ter por merecimento e que nem é “direito” exclusivo nosso.
4. Damos porque assim revelamos onde está nosso tesouro. Foi o Pai quem primeiro deu o seu próprio filho para que assim experimentássemos vida, abundante e eterna. O filho deu o seu tempo, as suas palavras, as suas ações, o seu corpo e o seu sangue... tudo também por amor a nós. Então faz sentido que um dos primeiros acontecimentos após o nascimento fosse também o ato de presentear, vindo daqueles senhores do Oriente que lhe trouxeram ouro, incenso e mirra.
Muito se diz, talvez até demasiado, sobre o significado de cada um dos presentes. Mas prestemos atenção por um momento somente naquele ato de dar. É verdade que Deus não precisa de nossos presentes, como se nossas mãos humanas pudessem dar a ele algo que realmente necessitasse (At 17.25). Não é assim que funciona. Na verdade, Deus não precisa de nada que lhe possamos oferecer. Então por que eles o presentearam e por que isso é registrado por Mateus (2.10-11)?
Parece que quando eles dão algo que lhes parece valioso, o que estão dizendo para o recém-nascido é que ele é o bem mais apreciado. O bebê é o tesouro, e não os bens preciosos que ele recebe. Assim é a nossa adoração a Deus, ou pelo menos assim deveria ser. Dou meu tempo, talentos e recursos, não porque Deus ou pessoas ao meu redor deles necessitem, mas porque, ao fazê-lo, eu declaro para Deus, para mim mesmo e para todos ao meu redor onde está meu verdadeiro tesouro.
Nesse Natal, onde está o seu tesouro? Ao longo do próximo ano buscarei aplicar essas pequenas lições em minha própria vida. Meus votos são que você também as torne concretas na sua.
1. O Senhor move o que quiser e quem quiser para cumprir os seus propósitos. Com um decreto, César Augusto indicou que todos deveriam se registrar em sua própria cidade (Lc 2.1-5). Assim, uma jovem prestes a se tornar mãe e seu noivo se deslocaram até Belém. As multidões, os impérios e os poderosos que nos governam muitas vezes nos fazem sentir pequenos e impotentes. Mas o personagem maior sempre atua de maneira a inclinar-se em favor do pequenino, movendo as peças para que “cedo ou tarde” seus desígnios se cumpram.
Se isso é verdade então a pergunta é se estamos atentos ao que o Senhor já vem fazendo, para que sejamos agentes privilegiados da sua ação no mundo. Busque ao Senhor e discirna onde ele já vem atuando. Se a ação é dele (em paternidade, iniciativa e controle), então o que me resta fazer é somar-me a ela com espírito humilde e agradecido.
2. O caminho do Senhor nem sempre é o mais fácil nem o mais simples. Vejam que o Senhor que move as autoridades máximas de um império aparentemente não foi capaz de reservar um alojamento para esse casal em Belém (Lc 2.6-7). Perguntamos-nos se não seria possível que movesse o coração do dono de uma estalagem ou que incitasse uma família para que fosse hospitaleira com os pais daquele bebê que viria para mudar o rumo do universo. Claro que seria possível, mas não foi esse o roteiro escolhido pelo grande chefe.
Esse bebê, quando grande, também não transformaria pedras para saciar sua fome com pães, nem daria saltos no vazio para ser acariciado por anjos. Também alertaria os desavisados de que ele não teria lugar para repousar sua cabeça. Que sua vida não seria fácil, que segui-lo tampouco implicaria em regalias e garantias. Pelo contrário, que segui-lo demandaria renúncia e levaria cada um a carregar sua própria cruz. Ele se tornou pobre por amor, para que cada um de nós se tornasse rico (2 Co 8.9), ainda que essa riqueza seja de uma natureza distinta à da nossa percepção comum. A vida nesse caminho não é fácil nem simples, mas assim é melhor, porque se trata de uma riqueza muito mais profunda e verdadeira.
3. Ele veio para que todos tivessem vida. A visita dos magos (que não eram três nem reis) foi surpreendente. Vindos do Oriente, possivelmente eram inesperados mágicos e astrólogos de nações consideradas pagãs. Esta visita antecipou quem se beneficiaria com a chegada do Messias. Não só uma família, nem só um povo, nem mesmo qualquer outro grupo de pessoas criado artificialmente por nossas próprias regras e tradições humanas. Se uma vida especial nascia naquele pequenino, essa vida era desde o princípio ofertada a todas as pessoas, de todos os grupos, de todas as nações.
Foi o próprio evangelho de Mateus, considerado como o evangelho escrito aos judeus, que deixa bem claro no seu início (por meio dos visitantes especiais), e no seu final (com o grande mandato para fazer discípulos em todos os povos), que essa vida era e é um oferecimento a toda a humanidade. Se muitos não a abraçam, talvez a culpa seja daqueles que se pensam exclusivos detentores dessa bênção. Por isso devemos ser vasos conscientes de que o que temos foi porque recebemos. Portanto somos bons mordomos que transbordam a todos os demais algo que não chegamos a ter por merecimento e que nem é “direito” exclusivo nosso.
4. Damos porque assim revelamos onde está nosso tesouro. Foi o Pai quem primeiro deu o seu próprio filho para que assim experimentássemos vida, abundante e eterna. O filho deu o seu tempo, as suas palavras, as suas ações, o seu corpo e o seu sangue... tudo também por amor a nós. Então faz sentido que um dos primeiros acontecimentos após o nascimento fosse também o ato de presentear, vindo daqueles senhores do Oriente que lhe trouxeram ouro, incenso e mirra.
Muito se diz, talvez até demasiado, sobre o significado de cada um dos presentes. Mas prestemos atenção por um momento somente naquele ato de dar. É verdade que Deus não precisa de nossos presentes, como se nossas mãos humanas pudessem dar a ele algo que realmente necessitasse (At 17.25). Não é assim que funciona. Na verdade, Deus não precisa de nada que lhe possamos oferecer. Então por que eles o presentearam e por que isso é registrado por Mateus (2.10-11)?
Parece que quando eles dão algo que lhes parece valioso, o que estão dizendo para o recém-nascido é que ele é o bem mais apreciado. O bebê é o tesouro, e não os bens preciosos que ele recebe. Assim é a nossa adoração a Deus, ou pelo menos assim deveria ser. Dou meu tempo, talentos e recursos, não porque Deus ou pessoas ao meu redor deles necessitem, mas porque, ao fazê-lo, eu declaro para Deus, para mim mesmo e para todos ao meu redor onde está meu verdadeiro tesouro.
Nesse Natal, onde está o seu tesouro? Ao longo do próximo ano buscarei aplicar essas pequenas lições em minha própria vida. Meus votos são que você também as torne concretas na sua.
19 novembro 2012
Quem sabe se abram os olhos
Dois episódios, envolvendo ateus, cristãos e muçulmanos, além de um documento escrito por várias mãos. Com isso encerro a breve reflexão sobre o testemunho cristão no mundo, iniciada aqui antes com dois artigos (Entre a cruz e o papa e Missão rima com diálogo). Essa curta série levanta ideias sobre como viver e comunicar bem o evangelho de Cristo no mundo de hoje.
Episódio 1
Terminada a palestra na Universidade Federal de Viçosa, fui abordado por um ávido e gentil grupo de estudantes interessados em dialogar. Faziam parte de uma agrupação autodesignada “Incrédulos”. O primeiro súbito desafio: “Prove que Deus existe!”. Intuí que o caminho deveria ser outro: “Aprecio que tenham essa disposição para ouvir e conversar. Eu não posso lhes ‘provar’ que Deus exista, do mesmo modo como vocês também não poderiam ‘provar’ que não exista. Assim, o que acham de começamos de maneira diferente? Eu lhes falo sobre como cheguei a crer naquilo em que creio hoje, desde minha perspectiva existencial. Mas além de subjetiva, ela é também algo objetivo, porque se trata de uma perspectiva histórica que se constrói a partir de uma visão e compreensão dos fatos. Mas antes eu gostaria de ouvir sobre o que vocês creem ou não creem, ou ao que aderem, e como foi que chegaram às suas conclusões”.
O resultado foi uma boa e longa conversa. No final, quando nos despedíamos, animei-os a continuar lendo e investigando. Mas não somente aquilo que reforçava o que eles já pensavam – um conselho que eu também busco seguir. Então um deles me disse algo assim: “excelente diálogo; espero que voltemos a nos encontrar no futuro; pode ser que você então tenha mudado algo na sua fé como fruto de nossa interação ou que a gente também tenha revisado a nossa posição, quem sabe?”. Fui embora feliz e esperançoso. Aquele “quem sabe”, para mim, já era promissor.
Episódio 2
Minha esposa e eu estávamos, antes de nossas filhas nascerem, estudando teologia na Inglaterra. Durante um trimestre encontrava-se em nosso meio um acadêmico de uma universidade do Oriente Médio, um muçulmano convicto e estudioso das relações inter-religiosas. Depois de um período no Vaticano, sua universidade o havia enviado ali para outra etapa de estudos e observação em um instituto do ramo protestante do cristianismo. Houve debates públicos interessantes, como um com nosso professor árabe cristão sobre violência e fé. Mas o mais fascinante era o diálogo pessoal, à mesa ou logo após o momento em que cada um se dedicava, a seu modo, às orações matinais.
Perto do final de seu tempo de intercâmbio, esse brilhante e devoto estudioso convidou alguns amigos nossos para acompanhá-lo nessa hora de orações. Esses amigos cristãos não compartilhavam aquela mesma devoção do “scholar”, mas respeitosamente o acompanharam e ouviram, para sua surpresa, sua prece a “Allah”: “Abra os olhos de meus amigos para que eles vejam toda a verdade. E se há algo que eu não esteja vendo bem, abra também meus olhos para que eu entenda toda a verdade”. A intercessão pelos olhos abertos, de um ou de outro, foi uma oração que me surpreendeu com esperança.
Um documento
Há pouco recebi um documento através de uma professora que tive, a brasileira Rosalee Velloso Ewell, quem atualmente desempenha a função de diretora executiva da Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial: “O Testemunho Cristão em um Mundo Multi-Religioso”, um texto produzido pela Aliança Evangélica Mundial, o Concílio Mundial de Igrejas e o Vaticano. Me pareceu uma cooperação pouco comum, mas que resultou em um documento relevante para provocar o debate e para resgatar alguns princípios para o diálogo com pessoas de outras crenças. É bem possível (ou mesmo desejável) que não se concorde com tudo o que está escrito aí, mas o fato de que seja possível o diálogo entre diferentes tradições cristãs pode ser um sinal auspicioso do caminho para que com respeito e integridade se possa viver e comunicar melhor o evangelho de Cristo entre aqueles que professam outras religiões ou o ateísmo.
Espero aprender a ouvir, a dialogar, anseio ser coerente e íntegro, na mensagem e na vida. Oro para que sempre meus olhos se abram e “quem sabe” eu consiga revisar em minha atitude e missão o que precise ser mudado ou melhorado. Aprender com a atitude de meus amigos ateus e muçulmanos pode ser um bom começo.
Episódio 1
Terminada a palestra na Universidade Federal de Viçosa, fui abordado por um ávido e gentil grupo de estudantes interessados em dialogar. Faziam parte de uma agrupação autodesignada “Incrédulos”. O primeiro súbito desafio: “Prove que Deus existe!”. Intuí que o caminho deveria ser outro: “Aprecio que tenham essa disposição para ouvir e conversar. Eu não posso lhes ‘provar’ que Deus exista, do mesmo modo como vocês também não poderiam ‘provar’ que não exista. Assim, o que acham de começamos de maneira diferente? Eu lhes falo sobre como cheguei a crer naquilo em que creio hoje, desde minha perspectiva existencial. Mas além de subjetiva, ela é também algo objetivo, porque se trata de uma perspectiva histórica que se constrói a partir de uma visão e compreensão dos fatos. Mas antes eu gostaria de ouvir sobre o que vocês creem ou não creem, ou ao que aderem, e como foi que chegaram às suas conclusões”.
O resultado foi uma boa e longa conversa. No final, quando nos despedíamos, animei-os a continuar lendo e investigando. Mas não somente aquilo que reforçava o que eles já pensavam – um conselho que eu também busco seguir. Então um deles me disse algo assim: “excelente diálogo; espero que voltemos a nos encontrar no futuro; pode ser que você então tenha mudado algo na sua fé como fruto de nossa interação ou que a gente também tenha revisado a nossa posição, quem sabe?”. Fui embora feliz e esperançoso. Aquele “quem sabe”, para mim, já era promissor.
Episódio 2
Minha esposa e eu estávamos, antes de nossas filhas nascerem, estudando teologia na Inglaterra. Durante um trimestre encontrava-se em nosso meio um acadêmico de uma universidade do Oriente Médio, um muçulmano convicto e estudioso das relações inter-religiosas. Depois de um período no Vaticano, sua universidade o havia enviado ali para outra etapa de estudos e observação em um instituto do ramo protestante do cristianismo. Houve debates públicos interessantes, como um com nosso professor árabe cristão sobre violência e fé. Mas o mais fascinante era o diálogo pessoal, à mesa ou logo após o momento em que cada um se dedicava, a seu modo, às orações matinais.
Perto do final de seu tempo de intercâmbio, esse brilhante e devoto estudioso convidou alguns amigos nossos para acompanhá-lo nessa hora de orações. Esses amigos cristãos não compartilhavam aquela mesma devoção do “scholar”, mas respeitosamente o acompanharam e ouviram, para sua surpresa, sua prece a “Allah”: “Abra os olhos de meus amigos para que eles vejam toda a verdade. E se há algo que eu não esteja vendo bem, abra também meus olhos para que eu entenda toda a verdade”. A intercessão pelos olhos abertos, de um ou de outro, foi uma oração que me surpreendeu com esperança.
Um documento
Há pouco recebi um documento através de uma professora que tive, a brasileira Rosalee Velloso Ewell, quem atualmente desempenha a função de diretora executiva da Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial: “O Testemunho Cristão em um Mundo Multi-Religioso”, um texto produzido pela Aliança Evangélica Mundial, o Concílio Mundial de Igrejas e o Vaticano. Me pareceu uma cooperação pouco comum, mas que resultou em um documento relevante para provocar o debate e para resgatar alguns princípios para o diálogo com pessoas de outras crenças. É bem possível (ou mesmo desejável) que não se concorde com tudo o que está escrito aí, mas o fato de que seja possível o diálogo entre diferentes tradições cristãs pode ser um sinal auspicioso do caminho para que com respeito e integridade se possa viver e comunicar melhor o evangelho de Cristo entre aqueles que professam outras religiões ou o ateísmo.
Espero aprender a ouvir, a dialogar, anseio ser coerente e íntegro, na mensagem e na vida. Oro para que sempre meus olhos se abram e “quem sabe” eu consiga revisar em minha atitude e missão o que precise ser mudado ou melhorado. Aprender com a atitude de meus amigos ateus e muçulmanos pode ser um bom começo.
16 outubro 2012
Missão rima com diálogo
Terminada a palestra, vejo uma mão levantada no fundo do auditório. Sem saber se a pergunta vinha de um estudante crente, ateu ou agnóstico, ouço ansioso a pergunta. Logo descubro, não sem antes ficar desconcertado ao ouvir: “Você não vai falar sobre a segunda vinda do Senhor Jesus?”
Lancei rápidos olhares ao resto do auditório, buscando rastrear quem mais ali seria do clube dos crentes (aliás, ao qual pertenço) ou quem também estaria ali como eu, meio perdido com a questão. Logo vi um, aparentemente descrente, com uma cara que parecia dizer “como diabos apareceu essa pergunta e o que ela tem a ver com o debate sobre ‘Pluralidade e relativismo’?”. Bem, esse companheiro incrédulo tampouco creria no diabo, mas isso é conversa para outro momento.
Isso aconteceu na universidade pública em La Paz, Bolívia, naquela atividade a que me referi no artigo anterior. Quando tudo terminou, pude conversar pessoalmente com o piedoso estudante da “indagatória”. Ele parecia muito angustiado porque eu não havia pregado sobre a segunda vinda naquela hora e lugar. Sua aparente motivação era seu ardente desejo de que muitos fossem salvos. Quando eu lhe disse que possivelmente muitos não entenderiam a mensagem do evangelho se eu começasse por aí, veio então seu comentário que terminou por desconcertar-me, “é assim mesmo, muitos rejeitarão o evangelho!”.
Recuperado de minha surpresa, lhe disse algo mais ou menos assim: “se estás de fato interessado com a salvação de seus colegas, é melhor que se preocupe com a maneira com que lhes comunica o evangelho de vida em Cristo. Certamente muitos o rejeitarão, mas não devemos nos esconder detrás de uma pobre e imperfeita apresentação do evangelho. Nosso dever é construir pontes, viver e comunicar bem esse evangelho. Com certeza haverá rejeição, mas pelo menos teremos feito a nossa parte e o resto a gente deixa para o Espírito.”
Construir pontes foi o que o apóstolo Paulo fez em muitas ocasiões, mas aqueles que trabalham entre estudantes se maravilham em especial com o que ele fez em Atenas (Atos 17.16-34). Vejam como Paulo lidou com as aparentes barreiras ou obstáculos que encontrou ali: a idolatria, o interesse aparentemente fútil pelas novidades, um santuário meio engraçado no caminho, uma intelectualidade soberba dos atenienses. Em tudo o que poderia ser visto como obstáculos, barreiras, Paulo, ao contrário, viu oportunidades para construir pontes e comunicar o evangelho.
Interessados nas novidades? Conversemos, todos os dias. Idolatria? Que bom que estão em uma busca espiritual. Orgulhosos de seus autores e de suas escolas filosóficas? Também os li e posso comentar a respeito de certos conceitos ou mesmo fazer citações de textos onde acertaram no alvo. Aquele altar por ali? Justo a partir dele lhes explicarei algo bem importante. Ou seja, para Paulo, cada uma das dificuldades era vista como uma oportunidade e um excelente ponto de partida para construir pontes de comunicação.
No final das contas sempre se chega a partes da mensagem em que há desacordos. É natural, algo que se espera em qualquer diálogo honesto. E que nos leva a duas perguntas extras. Primeira: como é que chegamos a esses momentos de confrontação, de que maneira? E a segunda: é possível que essa confrontação seja legitimamente respeitosa?
Quanto à primeira, recordo do livro que li avidamente em minha época de estudante universitário quando eu buscava compartilhar minha fé com meus companheiros. Nessa obra de Dostoiévski, o atormentado personagem de “Memórias do subsolo”, fechado em seu próprio mundo, diz em determinado momento:
“Destruí os meus desejos, apagai os meus ideais, mostrai-me algo melhor, e hei de vos seguir. Direis que talvez não vale a pena mesmo ocupar-se disso; mas, neste caso, posso responder-vos de modo idêntico. Estamos argumentando a sério; mas, se não quiserdes dignar a dirigir-me a vossa atenção, não serei o primeiro a inclinar a cabeça. Tenho o meu subsolo”.1
No texto vemos o personagem em um lampejo de abertura, deixando de estar encerrado em si mesmo, e disposto a considerar “algo melhor” e a “seguir” esse caminho. Mas será que eu estaria disposto a ocupar-me dessa tarefa, a esforçar-me para dialogar com esse que é diametralmente oposto a mim? A chave está na inclinação da cabeça. Se creio que não devo prestar atenção ao outro e àquelas que me parecem bobagens ou enganos em que ele tão piamente acredita, então posso esperar que naturalmente suceda essa ação reflexa de sua parte, um pescoço duro, um ouvido fechado e um coração trancado em seu próprio subsolo.
Custa tanto assim ouvir e interessar-se genuinamente pelo outro? Entendo que muitas vezes haja o desejo para rapidamente chegar aos pontos de desacordo e confrontação. E é possível que uma urgência se faça necessária, por exemplo, quando se trata de cuidar e preservar a vida, em especial do mais vulnerável. Mas não podemos deixar de lado a força do caminhar junto com o outro, o inclinar a cabeça em sua direção, escutar, tolerar, dialogar e nesse processo construir pontes para o “algo melhor” que você acredita ter a oferecer. Ou para revisar algo em sua postura e posição se necessário for.
Aquele estudante em La Paz que cria haver uma só maneira de apresentar o evangelho me fez voltar a pensar no poder das pontes de diálogo para a missão cristã. Voltarei a uns princípios para esse diálogo e sobre se é possível fazê-lo de uma maneira “legitimamente respeitosa” no próximo texto.
Nota:
1. Dostoiévski, Memórias do Subsolo, Ed. Paulicéia, p. 96.
Lancei rápidos olhares ao resto do auditório, buscando rastrear quem mais ali seria do clube dos crentes (aliás, ao qual pertenço) ou quem também estaria ali como eu, meio perdido com a questão. Logo vi um, aparentemente descrente, com uma cara que parecia dizer “como diabos apareceu essa pergunta e o que ela tem a ver com o debate sobre ‘Pluralidade e relativismo’?”. Bem, esse companheiro incrédulo tampouco creria no diabo, mas isso é conversa para outro momento.
Isso aconteceu na universidade pública em La Paz, Bolívia, naquela atividade a que me referi no artigo anterior. Quando tudo terminou, pude conversar pessoalmente com o piedoso estudante da “indagatória”. Ele parecia muito angustiado porque eu não havia pregado sobre a segunda vinda naquela hora e lugar. Sua aparente motivação era seu ardente desejo de que muitos fossem salvos. Quando eu lhe disse que possivelmente muitos não entenderiam a mensagem do evangelho se eu começasse por aí, veio então seu comentário que terminou por desconcertar-me, “é assim mesmo, muitos rejeitarão o evangelho!”.
Recuperado de minha surpresa, lhe disse algo mais ou menos assim: “se estás de fato interessado com a salvação de seus colegas, é melhor que se preocupe com a maneira com que lhes comunica o evangelho de vida em Cristo. Certamente muitos o rejeitarão, mas não devemos nos esconder detrás de uma pobre e imperfeita apresentação do evangelho. Nosso dever é construir pontes, viver e comunicar bem esse evangelho. Com certeza haverá rejeição, mas pelo menos teremos feito a nossa parte e o resto a gente deixa para o Espírito.”
Construir pontes foi o que o apóstolo Paulo fez em muitas ocasiões, mas aqueles que trabalham entre estudantes se maravilham em especial com o que ele fez em Atenas (Atos 17.16-34). Vejam como Paulo lidou com as aparentes barreiras ou obstáculos que encontrou ali: a idolatria, o interesse aparentemente fútil pelas novidades, um santuário meio engraçado no caminho, uma intelectualidade soberba dos atenienses. Em tudo o que poderia ser visto como obstáculos, barreiras, Paulo, ao contrário, viu oportunidades para construir pontes e comunicar o evangelho.
Interessados nas novidades? Conversemos, todos os dias. Idolatria? Que bom que estão em uma busca espiritual. Orgulhosos de seus autores e de suas escolas filosóficas? Também os li e posso comentar a respeito de certos conceitos ou mesmo fazer citações de textos onde acertaram no alvo. Aquele altar por ali? Justo a partir dele lhes explicarei algo bem importante. Ou seja, para Paulo, cada uma das dificuldades era vista como uma oportunidade e um excelente ponto de partida para construir pontes de comunicação.
No final das contas sempre se chega a partes da mensagem em que há desacordos. É natural, algo que se espera em qualquer diálogo honesto. E que nos leva a duas perguntas extras. Primeira: como é que chegamos a esses momentos de confrontação, de que maneira? E a segunda: é possível que essa confrontação seja legitimamente respeitosa?
Quanto à primeira, recordo do livro que li avidamente em minha época de estudante universitário quando eu buscava compartilhar minha fé com meus companheiros. Nessa obra de Dostoiévski, o atormentado personagem de “Memórias do subsolo”, fechado em seu próprio mundo, diz em determinado momento:
“Destruí os meus desejos, apagai os meus ideais, mostrai-me algo melhor, e hei de vos seguir. Direis que talvez não vale a pena mesmo ocupar-se disso; mas, neste caso, posso responder-vos de modo idêntico. Estamos argumentando a sério; mas, se não quiserdes dignar a dirigir-me a vossa atenção, não serei o primeiro a inclinar a cabeça. Tenho o meu subsolo”.1
No texto vemos o personagem em um lampejo de abertura, deixando de estar encerrado em si mesmo, e disposto a considerar “algo melhor” e a “seguir” esse caminho. Mas será que eu estaria disposto a ocupar-me dessa tarefa, a esforçar-me para dialogar com esse que é diametralmente oposto a mim? A chave está na inclinação da cabeça. Se creio que não devo prestar atenção ao outro e àquelas que me parecem bobagens ou enganos em que ele tão piamente acredita, então posso esperar que naturalmente suceda essa ação reflexa de sua parte, um pescoço duro, um ouvido fechado e um coração trancado em seu próprio subsolo.
Custa tanto assim ouvir e interessar-se genuinamente pelo outro? Entendo que muitas vezes haja o desejo para rapidamente chegar aos pontos de desacordo e confrontação. E é possível que uma urgência se faça necessária, por exemplo, quando se trata de cuidar e preservar a vida, em especial do mais vulnerável. Mas não podemos deixar de lado a força do caminhar junto com o outro, o inclinar a cabeça em sua direção, escutar, tolerar, dialogar e nesse processo construir pontes para o “algo melhor” que você acredita ter a oferecer. Ou para revisar algo em sua postura e posição se necessário for.
Aquele estudante em La Paz que cria haver uma só maneira de apresentar o evangelho me fez voltar a pensar no poder das pontes de diálogo para a missão cristã. Voltarei a uns princípios para esse diálogo e sobre se é possível fazê-lo de uma maneira “legitimamente respeitosa” no próximo texto.
Nota:
1. Dostoiévski, Memórias do Subsolo, Ed. Paulicéia, p. 96.
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