29 abril 2009

Uma deusa, intelectuais e um manual



Não sou economista, nem adivinho o futuro, mas confesso que gostaria de viver em um mundo melhor, para mim, para minhas filhas, e para os outros bilhões de pessoas como a gente que dividem a vida nesse planeta.

Também confesso que fico encasquetado com os mitos e dogmas em volta da deusa que comanda tudo ao redor nosso, e que parece ditar se meu desejo pode ou não tornar-se realidade: a poderosa deusa Economia.

Foi assim, entre desencantado e incrédulo que li a notícia da euforia (possivelmente passageira) que tomou hoje o mundo financeiro com os dados que apontam uma retomada do consumo entre cidadãos norte-americanos.

A lógica é bastante simples. Ou pelo menos parece ser. Com mais consumo (vida breve aos poupadores!), mais demanda de produtos, mais emprego para todos (bem, na verdade não todos, porque, segundo a tal deusa, é adequado ao sistema que haja um percentual da força de trabalho assim, digamos, fora do sistema, mas vendendo sua alma para entrar...).

A riqueza produzida cresce e todos ficam felizes. É claro que há um grupo seleto que fica mais contente, aqueles que conseguem receber e concentrar parte substancial dessa riqueza. Alguns até poderiam argumentar que mesmo o historiador marxista Hobsbawm já reconheceu algumas benesses da ideologia do neoliberalismo de mercado livre:

“Seu objetivo não era abolir a pobreza, ou redistribuir recursos e gerar justiça social; ainda assim, apesar de tantas injustiças como existem, até os pobres viram sua situação melhorar, ao ponto de aceitar o atual estado das coisas.”1 (ou seja, em uma humilde paráfrase: mais qualidade de vida para todos não necessariamente rima com justiça social).

O que ainda fico pensando é se devemos aceitar, entre tantos mitos que os profetas da deusa nos pregam todos os dias, que consumir desenfreadamente seria a solução. Ou se faz algum sentido desejar que os PIBs de cada nação do planeta continuem a crescer indefinidamente, em um ritmo insano de ganância e de expropriação do mundo em que vivemos.

Uma sugestão: leia a entrevista que saiu já há um tempo na que é a melhor revista que apareceu nos últimos tempos (Vida Simples). O entrevistado é o economista e filósofo francês Serge Latouche, falando sobre decrescimento sustentável. Pode soar loucura, idealista e não factível, mas me pergunto se as verdades mais sanas do mundo, como as do evangelho de Jesus, não parecem exatamente ser feitas desse mesmo componente tão utópico, mas tão profundamente real e necessário.

Também veja e compartilhe um manual bem interessante que orienta acerca de estilos de vidas saudáveis, baseados em padrões de consumo sustentáveis.2

Pode ser pouco, pode ser pequeno, mas já imaginou se muita gente começa a pensar e a agir diferente?

1 Entrevista sobre el siglo XXI, Eric J. Hobsbawm, Biblioteca de Bolsillo, Crítica, 2004, p. 110.

2 Agradeço a meu amigo Lissânder pela dica desse excelente material.

Foto: ©
Concentración
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23 abril 2009

O padre e nosso pecado




– Você, sabe, Zé, que a Uruguai muitas vezes lhe chamam Paraguai...
– Sim.
– Pois é...
– E...
– Já pensou se nosso presidente fosse aquele padre?
– Ô, Mané, você não está querendo julgar o homem, está?
– Julgar? Quem sou eu? Talvez invejar...
– Opa, deixa a Menê saber disso.
– Não, deixa minha mulher fora disso. Escapou, só isso. Na verdade não queria nem morto estar metido nesse rolo. Mas fico pensando, Zé.
– Em quê? Nos pecados do homem?
– Mais ou menos. Fico matutando sobre como ele pecou.
– Ah, agora mesmo é que eu falo com a Menê. Está é fantasiando em cima das aventuras do dito cujo.
– Não, não é isso, Zé.
– Então, que é?
– Sei lá, fico aqui me perguntando, e se ele tivesse usado aquilo?
– Aquilo o quê?
– Ora, o negócio, o preservativo.
Zé balançou seu corpanzil, apertou seus olhos, hesitou por um momento, mas atirou de volta:
– Mas isso é pecado, Mané.
– E aquilo outro, ou as outras, sei lá, tudo isso não é também?
– Sim, mas... talvez ele e inclusive elas, não pensassem assim. Era amor, e amor não pode ser pecado. Bem, não estou bem certo, e você nunca vai contar isso pra Astrô, deixa minha mulher fora disso. Mas se supormos que eles pensavam que o que faziam era algo sublime, até tem um, digamos, fruto, com o nome do saudoso papa. É certo que para eles era algo mais elevado, mais nobre. Colocar essa coisa de camisinha aí no meio seria pecado e ponto.
Foi a vez de Mané balançar a cabeça, visivelmente contrariado.
– Ainda não entendo as divisões que a gente faz sobre o que é e o que não é pecado... São essas nossas contradições e incoerências. Tem razão aquele salmista ou profeta, nem me lembro mais, que diz que o nosso tal coração é muito enganoso. A gente se engana, Zé, pra fazer o que no fundo sei que está mal. Acho mesmo que a gente passa a acreditar que nem é algo tão ruim assim, ou até mesmo reconstruímos, recontamos a história no nosso coração de modo que acho que é justificado, nobre, ou que eu não tinha outra alternativa se não esse caminho...
– Que puseram nesse seu mate, Mané?
– Nada, nada...
...
– Zé!
– Quê, Mané? Já quer voltar a falar do padre?
– Não! Faz tempo que nem penso mais nele. Estou pensando em mim...
– E...
– Sabe, Zé, você me faz um favor?
– Diga!
– No dia em que eu estiver fazendo algo achando que estou tudo beleza, quando na verdade eu estiver metendo o pé na... você sabe...
– Na lama.
– Isso, pode ser, na lama. Você me dá uma mão?
– Como?
– Bom, talvez não me deixando só. Pode, e deve, me perguntar, provocar, questionar, puxar meu tapete, não deixe eu me enganar!
– Hmmm... Será que funciona?
– Na verdade, não sei, mas se é para vigiar e cuidar, creio que com dois será melhor que com um sozinho.
– Certo... E se for uns vinte?
– Embora, Zé!
...

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16 abril 2009

Sobre rótulos e ídolos



“Você é conservador?” Foi assim, na lata, que um aluno procurou arrancar de mim uma confissão. Voltávamos juntos no ônibus, depois daquela primeira aula. Uma vez que recém havíamos nos conhecido, quis sondar em que “time” eu jogava.

“Bem, depende do quê você está falando e do que você entende por essa palavra”, lhe devolvi em meio a um sorriso quase dissimulado.

Nesse dia voltei a pensar em nossa necessidade de definir de antemão quem são nossos interlocutores. Sobre esse desejo de conhecer de onde falam, a que tribo pertencem, e assim supostamente preparar-me para melhor escutá-los. Na verdade, para alguns, essa inclusive é a senha para escolher a quem eu dedicarei, ou não, meu precioso tempo.

Se já consigo adivinhar ou enquadrar a fulana em algum grupo, e se essa linha de pensamento em particular não me atrai, se me desgosta, então não a ouço, não a leio, ou ainda o faço mas com o objetivo de refutar-la desde minha cômoda e confortável posição já bem definida.

Outro dia tive uma grata surpresa ao ler um artigo de um excelente historiador uruguaio, Lincoln Maiztegui Casas. Tenho admirado a qualidade e o rigor de seus escritos, que vêm me apresentando uma faceta interessante da história política do Uruguai. Escreve bem, além de desfilar sua integridade intelectual.

Essa última foi mais uma vez atestada outro dia quando ele, que é rotulado como um autor mais à direita no espectro político, digamos que um “conservador”, nos regalou um breve e interessante artigo sobre a queda de um de seus “ídolos” (La irresistible caída de Paul Johnson) .

Ao revelar sua admiração pelo historiador britânico, mostrou-nos como ler bem e criticamente. Ao fazê-lo nos confessou sua descoberta. Seu herói veio ao chão. Não dava mais para tragar os equívocos ou os preconceitos desvelados por uma cuidadosa leitura. Bem-vinda lição de que a simpatia ou adesão a uma ideologia não devem quitar nosso juízo crítico.

Se me contento apenas com a primeira impressão, ou se aceito qualquer coisa apenas pela imagem e pelo nome de quem veio a opinião, caio em armadilhas causadas pela preguiça intelectual.

Então os rótulos são assim. Evitam que eu “leia” bem a vida e os aportes que o outro tem para me oferecer, para me desafiar. Por isso tenho que encontrar-me com aquilo que me incomoda, que me tira de minha posição cômoda, que me faz pensar e amadurecer naquilo que sou e em que creio.

Meu aluno ficou sem resposta. Por uma desventura, ou para minha felicidade, meu destino chegou logo depois daquela capciosa pergunta. Melhor assim. Através de seus olhos e de sua “leitura”, mais do que ele espero ganhar eu novas percepções de minha própria identidade, crescendo e amadurecendo, como na vida deve ser.

Foto: © Paris, 26/04/2008.
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