19 agosto 2008

De onde você é?



Outro dia me perguntaram, “Você é de Rivera?”. A pergunta me deixou com aquele sentimento indefinido entre a decepção e a esperança.

Algumas explicações são necessárias. Um tanto óbvias, me desculpe, mas vamos a elas. Sou brasileiro. Vivo no Uruguai, em sua capital, Montevidéu. Rivera é uma cidade na fronteira com o Brasil. Muitos aí falam português ou portunhol. Ser de Rivera poderia significar ser um uruguaio, mas um que tem esse forte sotaque da fronteira.

Não tenho ainda muita quilometragem uruguaia. No momento, 1 ano, 7 meses e 10 dias. Quase nada. Mas as ambições costumam ser grandes. Uma delas é a de querer se identificar com a gente do país que adotamos. Não é fácil, mas está aí a aspiração.

Outro dia confessei-a a um amigo uruguaio, “quero que as pessoas me confundam com um uruguaio”. Ele me olhou em silêncio, e depois disse bem sério “se for um húngaro, talvez ele imagine isso”. Amo a doce ironia uruguaia.

Nem ligo. Inclusive, como minha amada esposa não deixa que me esqueça, sou irônico, a assim renovo minha esperança. Ao menos algo estou aprendendo. É bem verdade que possa ter vindo do Brasil assim, desse jeito, mas nem me lembro bem. É sempre mais fácil ver defeitos nos outros. Eu disse defeito?! Bom, deixemos isso de lado por enquanto.

Volto a pensar nesses montões de missionários transculturais em tantas partes do mundo. Conheci vários. Leio muitas de suas cartas desde os confins distantes de suas pátrias amadas. Tem uma coisa que não aprecio nessas cartas. É claro que eu possivelmente também faça o mesmo. Mas como eu disse sobre os defeitos...

O que me incomoda é ver em muitas delas essa equação “eles” e “nós”. Os “outros”, os “nativos”, tão diferentes e tão indecifráveis. Às vezes isso se revela mais claramente. Outras, sutilmente. É a revelação de um detalhe mais pitoresco, a afirmação de um grande obstáculo ou desafio “nessas terras”, ou mesmo um pedido de oração para que Deus faça algo entre “eles”. Ou seja, é fácil perceber que se trata de um estrangeiro em terras alheias.

Matutei sobre o tema, confesso que também sou pecador, mas resolvi adicionar uma ambição à minha lista. Trata-se de imaginar que, se alguém que não me conhece venha a ler uma das cartas que envio do “campo missionário”, não consiga identificar de onde sou, imaginando que eu seja um obreiro qualquer trabalhando entre tantos outros na seara em terras uruguaias.

Cometo a ousadia de sugerir esse saudável exercício para colegas missionárias e missionários transculturais. Ainda que não mudemos a realidade de que somos de onde somos, e creio que esse é um grande benefício do trabalho em equipes multiculturais, ganharemos todos com o esforço sincero de identificação e integração nas culturas onde servimos.

Por aqui sigo com minha aspiração. Estou louco para me encontrar com aquele húngaro e ver o que ele me dirá.

Foto: © El Salvo
Upload feito originalmente por Libertinus

05 agosto 2008

"Nós nunca contamos almas"



A grande área envidraçada do auditório deixava ver a batalha das folhas verdes com o vento frio da primavera do Rhön.

Era maio de 2006, e minha atenção deixou por alguns momentos os embates da natureza nessa bela região da Alemanha. Creio que foi pelo desconforto com o que acabara de ouvir.

Observe que a expositora tinha excelentes credenciais. Apresentada como consultora de clientes como Tony Blair e Shell, não havia como negar o brilhantismo de sua exposição.

Ainda assim, o suor frio de minhas mãos e minha leve taquicardia denunciavam secretas intenções. Eu queria discordar! Ousadia ou tolice, não sei bem, e ainda podia ser um preciosismo de minha parte. Talvez fosse melhor concordar, ser desafiado por novas perspectivas, essas coisas.

Mas a mão impulsiva se levantou antes que minha cabeça pensasse bem. Quando vi já estava com o microfone em mãos, gaguejando e buscando fazer um contraponto à exposição.

Basicamente, foi uma reação ao uso de metodologias quantitativas para a avaliação da efetividade do ministério estudantil. Em resumo, tentei dizer o seguinte: os números não nos dizem tudo! Ou seja, podemos ter bons números e, na verdade, estar indo na direção equivocada. Ou, o oposto também é verdadeiro, números pouco expressivos mas ainda assim estar fazendo o que deveríamos fazer.

É uma questão delicada, mas quis dizer que os números, sem uma adequada interpretação dos mesmos e do contexto, podem nos enganar.

Sentei-me. Já quase sabia o que vinha. De maneira bondosa, bem explicativa, quase condescendente, fui desafiado a “abrir” meu entendimento e buscar meios mais efetivos de avaliar meu rendimento.

Foi aí que aquele senhor, em seus 81 anos, pediu a palavra e disse três frases: “Eu concordo com o jovenzinho. Nós nunca deveríamos contar almas! A única coisa que contamos é dinheiro!” (“I agree with the young boy. We should never count souls! The only thing we count is money!”).

Era Sir Fred Catherwood. Por muitos anos tesoureiro da IFES, genro do saudoso Martyn Lloyd-Jones, antes de se aposentar Sir Fred destacou-se no Parlamento Europeu, onde chegou a ocupar a vice-presidência.

Não preciso dizer que havia ganho o dia. Na hora do intervalo, deixei o casaco dentro do auditório e saí para respirar fundo o ar da fria Baviera (e chamam isso de primavera!). O coração já estava aquecido. Podia ser tolice, ou vã vaidade, mas o sentimento era bom, por certo que era.

Ano passado voltei a encontrar-me com Sir Fred. Lembrei-lhe do episódio. Ele se recordava do que havia passado. Mas não se lembrava que eu era aquele “jovenzinho".

Veja bem que foram suas palavras. E, acredite, minha maior alegria foi pelo “we never count souls”, e não por sua percepção de minha juventude. Desconfio que seus óculos o traíram quanto aos anos de vida que me atribuiu. A diferença entre seu palpite e minha real idade? Nem me lembro, não conto mais, “the only thing we count is money!”.


Foto: ©
Counting money
Upload feito originalmente por electrolyte2006