26 abril 2008

O outro lado da cerca



Cercas são necessárias. Tanto para crianças como, perdão pela comparação, para animais. Em ambos falta juízo. Pensando nas crianças e no seu bem, cercas e protetores de tomadas são úteis para que não se machuquem. É proteção em sua essência.

Também é verdade que as protegemos se removemos as cercas na medida em que elas crescem. Quando a meta é responsabilidade e maturidade, continuar “protegendo” para sempre será um desserviço ao caminho do crescimento.

Do mesmo modo funciona a jornada para a maturidade na fé cristã. As cercas podem e devem funcionar em algum momento. Caso reconheçamos que acreditar em algo é primário e duvidar é secundário, como ao menos deveria ser, então é bom que se construa alguma base sólida inicial, antes da época dos enfrentamentos. Mas, depois, se essa fé não for desafiada pelo mundo, nas confrontações “fáceis” e “difíceis” da vida, ela não chegará a ser tal desejado alicerce.

Uma confrontação “fácil” seria muitas vezes aquela em que o oponente se coloca tão claramente contrário à visão de mundo de sua fé, que não custa muito identificar as áreas de discordância e para onde cada um está apontando.

Já os conflitos “difíceis” seriam aqueles em que o lado de lá da cerca apresenta argumentos que nos parecem apropriados, sensatos, coerentes. Quase dá vontade de estar do “outro lado”, defendendo exatamente os mesmos pontos, ou pelo menos quase isso. A questão é que, ao examinar mais de perto, escrutinando os fundamentos de suas posições e levando ao limite as conseqüências de seus argumentos, pode-se muitas vezes perceber que na verdade há um profundo hiato, uma batalha de cosmovisões.

Posso não saber muito como argumentar de volta (quase nunca o sei) mas vem o sentimento e a percepção de que há algo fundamentalmente diferente entre as concepções de mundo desse "outro" e as minhas próprias.

Claro que posso sempre querer usar o tentador expediente do “homem de palha”, ao tentar simplificar e reduzir a opinião alheia a algo tão fraco ou estúpido que facilmente posso derrubar. Mas isso não seria honesto nem uma ajuda apropriada à causa de minha fé.

Chego então ao ponto principal. O de que toda verdade é ou não verdade de fato se passa pelo crivo do debate no espaço público. Se a verdade do evangelho que eu acredito não vem para essa esfera do questionamento, da dúvida, da suspeita, da argumentação contrária, então ela não foi nem nunca será verdade. Pode até ser uma verdade do ponto de vista conceitual, abstrato, mas nunca o foi para mim, se é que não a “arrisco” na arena pública. Ou não seria melhor dizer “se não me arrisco”?

Ainda não tenho bem claro para mim se nesse espaço público devemos nos dedicar mais à pregação ou à persuasão. Sou um fã das duas, e não me parece adequado abrir mão de uma ou de outra. Anúncio ou diálogo? Exposição bem elaborada ou ouvido mais atento? Proclamar ou buscar persuadir? Talvez se substituirmos o “ou” das três perguntas anteriores por um “e
podemos ir tateando um possível caminho.

Enquanto isso, diz-me aí de que lado da cerca você está. O pasto verdinho do lado de cá é mesmo tentador para ruminar, em tranqüila e indiferente pasmaceira. O lado de lá é um debate “arriscado”, de perguntas e confrontações. Posso apanhar naquele lado, e até ser mal visto por haver “atravessado a cerca”. Então lhe digo, se estiver preparado, pule a cerca! Mas veja bem para que salte essa e não aquela outra. Não aceitarei a desculpa de que fui eu quem lhe induziu ao mau caminho. Pelo menos seu marido ou esposa não deveria aceitá-la. Até a próxima!


Foto: © Pablo Nogueira - El viaje hacia el mar
Upload feito originalmente por nogue

18 abril 2008

Profetas “para dentro” e “para fora” - 2


Encaro a tal promessa feita no artigo passado. Se você não acompanha tão assiduamente o blog como o faz a tia Dorotéia, eu lhe explico do que se trata. Impensadamente eu prometi continuar a explorar as causas sobre o porquê supostamente temos sido mais profetas “para dentro” do que “para fora” da igreja.

Sigo nessa exploração através de um exercício de auto-crítica. Era o começo da década de 90 e eu me havia proposto a preparar uma apostila para um curso de formação de líderes da ABU. O tema era um exagero ambicioso, e aqui uso a palavra ambição no sentido negativo que lhe podemos atribuir. Propunha-me a explorar o singelo assunto dos “desafios da (pós) modernidade”.

O fato de ter usado o “pós” entre parênteses não sucedeu por qualquer requinte conceitual. Era dúvida mesmo, simples e crua, se me acercava dos desafios da tal modernidade que tanto nos modelou e ainda nos modela, ou se me aproximava dos conceitos que não entendia bem (sigo sem saber dominá-los) da chamada pós-modernidade.

Apresentei um primeiro esboço da empreitada a alguns amigos. Lembro-me da reação da boa amiga Lígia Pupo. Ela me perguntou assim, sem rodeios, “que leitores não-cristãos você leu acerca do tema?”. Fiquei meio assim sem saber como responder, talvez porque ela acabava de expôr meu tendão mortal, enquanto continuou paciente e didaticamente, “digo esses autores que representam, em seus livros, seu pensamento, o que foi ou é o modo de pensar de uma geração”.

Touché! Fora atingido no elo mais fraco, e teria que admitir meu fracasso. Não é o caso de que eu não estivesse lendo coisa boa. Era a época de minha descoberta de autores fabulosos como Lesslie Newbigin ou Jacques Ellul. Preciso, e talvez muitos entre nós também, ler ou reler obras de autores como esses dois para que aprendamos a ser profetas de verdade no meio de nossa geração e realidade.

O problema é que eu não posso deixar de fazer a lição de casa que eles próprios tentaram nos ensinar. A de que só terei alguma chance de ser relevante no que digo à sociedade ao meu redor, no debate público que nenhum cristão pode se furtar, se eu de fato conhecer a mentalidade reinante, seus esquemas, seus pressupostos aceitos e muitas vezes ocultos, e conhecê-los em primeira mão, desenvolvendo meu próprio olhar crítico. Isso porque o que recebo já mastigado traz as marcas da dentadura de um que já ruminou o negócio. Tenho que sentir o gosto eu mesmo, desenvolver a habilidade de um copeiro real, saber cheirar a intriga e desvendar a charada antes que ela me envolva de tal maneira que aceite e coma qualquer coisa que seja colocada diante de mim.

Então, faça o controle na sua lista de livros e programas que você vê e ouve. Não se alimente só do que é “seguro” e “bom” para a sua alma. Você não chegará à vacina se não se arriscar a provar um pouco desse veneno. Como não se perder ou morrer no meio do caminho? Bom, se você acreditou na promessa anterior e leu essa seqüência do tema, talvez não seja difícil que eu lhe engabele uma vez mais e convide-o a voltar por aqui e ver até onde podemos ou queremos chegar. Até lá!


Foto: ©
Revolving Doors.
Upload feito originalmente por Ange Soleil ( a.k.a Tweng )

14 abril 2008

Profetas “para dentro” e “para fora”



“Fulano é um amor de pessoa!”. Ao lado, a esposa do indivíduo reage com olhar de surpresa e um risinho contido. Uma cena comum, talvez fruto da confusão entre intimidade e grosseria a que uma vez referiu-se C. S. Lewis. Funciona mais ou menos assim. Para dentro de casa, na família, falo o que penso e do jeito que quero. E ainda defendo essa “liberdade” como um sinal de intimidade. Para os de fora, a gentileza e amabilidade acima de qualquer suspeita.

Ampliemos a metáfora para pensar um pouco sobre o que acontece dentro e fora da Igreja. Para esse exercício, podemos pensar tanto na realidade ampla da Igreja maior, visível e invisível, como na comezinha vida de uma comunidade eclesiástica, grande ou pequena, à qual você ou eu nos conectamos.

Tenho a impressão de que muitas vezes nos especializamos e nos esforçamos em ser bons profetas “para dentro” de nossas comunidades e não tanto profetas “para fora”, para a sociedade maior onde vivemos.

Pense um pouco sobre o conceito de profeta. Aquele que é capaz de “ler os sinais dos tempos”. Ou seja, ler a realidade a seu redor, com senso crítico, discernindo os acontecimentos de seu tempo, buscando entender porque vivemos assim, o que está oculto e não revelado ou para onde vamos se seguimos nesse caminho. Hábil para entender para que opções e padrões nos dirigimos, tanto nas relações interpessoais, como nos modelos de famílias ou nas sociedades que construímos, como nas nações que modelamos ou ainda nas relações que estabelecemos entre elas no mundo de hoje.

Então o profeta é aquele capaz de “denunciar” e “anunciar”. Denuncia o mal e a injustiça, para anunciar o juízo e a misericórdia, as conseqüências que levam à morte, mas também as promessas de esperança e de vida.

Creio que, no exercício de nossos dons como profetas, agimos muito mais “para dentro” de nossas comunidades eclesiásticas do que “para fora”. Somos bons, especialmente em certos círculos, em criticar os equívocos e desvios da Igreja. Obviamente que esse é um exercício sumamente necessário. Ainda assim, pergunto-me se nossos olhos andam atentos e se nossa voz também se levanta firme quando se trata de questionar o estabelecido e amplamente aceito no mundo e sistemas em que vivemos. Falo de sistemas econômicos, políticos, como também de sistemas morais e sociais em que vejo pouca contribuição e coragem (incluindo a mim mesmo) para levantar a voz a favor do bem e da justiça.

Por que somos bons ao criticar e denunciar “para dentro” e pouco efetivos ou corajosos para fazer isso “para fora”? Uma possível explicação seria a de que a mentalidade “do mundo” (entendido como um sistema perverso e vil que escraviza as pessoas) também se encontra facilmente dentro das paredes da Igreja. Mas essa é somente parte da explicação e tema para outra reflexão, que por si só demanda seriedade e profundidade.

Por agora arrisco-me a tentar outra explicação. Não conhecemos o mundo em que vivemos. Não sabemos ler bem nossa realidade. Assim, não temos como discernir o que deve ser “denunciado”, nem o que deve ser “anunciado” (e esse acontece também porque pouco sabemos acerca do que consiste nossa fé).

Falta-nos leitura, falta-nos senso crítico, assim como uma firme disposição e as ferramentas adequadas para ler os sinais de nossos tempos. Também nos falta a “intimidade” que a esposa do Fulano tinha para rir acerca do olhar ingênuo e externo acerca de seu nobre esposo.

Também nos falta agora o espaço para seguir explorando essas causas. Prometo então seguir o assunto em outro artigo. Creia em mim, sou bom em promessas! Tudo bem, já sei o que você irá fazer: buscará ver no cantinho da boca de minha esposa se há o esboço de alguma risadinha. Pode fazer isso, nem me importo. Vá exercitando sua habilidade de tentar “ler” bem a realidade e a verdade por detrás das palavras! Vemo-nos na seqüência do tema, é claro, se eu cumprir a promessa...

Foto: © Hülya Bayrak

05 abril 2008

Especialistas

Uma amiga uruguaia me fez a seguinte pergunta outro dia: “Ricardo, você que é um especialista em Bíblia, saberia me dizer qual foi o meio de transporte que Noemi e Rute usaram em sua viagem a Palestina?”

Demorei alguns segundos para tentar engatar uma resposta. Não tanto pela minha assumida falta de conhecimento acerca dos meios de transporte no Meio Oriente do século XI ou XII a. C., e sim por ficar pensando na palavra que ela usou para referir-se a mim, “especialista”.


Junto com a surpresa veio rápido à minha mente que poderia ter sido eu mesmo o culpado pela disseminação
de tal propaganda enganosa. Devo ter irresponsavelmente incluído essa expressão em algum breve currículo de minha curta vida acadêmica ou usado-a em alguma apresentação pessoal onde tenha desejado melhorar o verniz de minha imagem pública.

Suei frio. Seria eu um especialista? Imagino que não. Desejaria ser um? Daí comecei a titubear.


Imagino que muita gente que se dispõe a dar conferências, escrever um livro, um artigo ou uma série de artigos, por exemplo, em um blog (qualquer semelhança com o que você vê aqui não é casual coincidência), possivelmente se trata de alguém que se vê como “especialista” em um tema e assim se dispõe a “ensinar” a outros.


Desculpem-me por esse público exercício de autocrítica, mas inclusive pretendo ampliar o escopo desse crivo crítico.


Suspeito que uma comunidade que Jesus modelou não deveria ser composta por “especialistas”. Há um interessante comentário naquele livro que lhes recomendei ler tempos atrás (“Que tal ler um livro?”), que fala do “compromisso radical dos Anabatistas com a crença de que em todos os cristãos, independente de educação ou profissão, habita o Espírito Santo e assim legitimamente todos podem e devem interpretar a Bíblia. [Para eles] Não há o pressuposto de que os acadêmicos [ou ‘scholars’, ou ‘especialistas’] deveriam ter a última palavra em matérias de fé e vida.”1


Junto à ela há também outra provocativa citação de um autor Menonita, Thomas Finger, dizendo que “a imersão em livros nos rouba tempo dos atos de misericórdia”.


São palavras que devem ser lidas em seu contexto, e que as entendo como também proferidas contra mim, que aqui estou escrevendo um artigo e recomendando livros no mesmo momento em que supostamente poderia estar exercendo misericórdia para com meu vizinho. Meu consolo, se é que há algum, está no fato de que apenas posso receber essa exortação do Thomas, contrária à especialização mais “acadêmica” ou “teológica”, porque ele também escreveu isso em algum lugar e eu, por minha vez, investi tempo e energia para lê-lo.


Fecho a digressão para concordar que o melhor seria se não tivéssemos tantos especialistas. Ou que então todos fôssemos “especialistas”, em uma óbvia e irônica contradição. Talvez necessária, para denunciar os modelos de dependência de alguns poucos e para encorajar uma interpretação da Palavra mais comunitária. Também para que tivéssemos mais livros (ou blogs) escritos por várias mãos, mais dinâmicas de formação e aprendizado que privilegiem o protagonismo daquele que aprende, mais trabalho em equipe, mais confiança na cooperação de muitos do que no estrelismo de poucos.


Qual seria então o papel reservado aos chamados líderes e mestres? Que seria desejável ou recomendável para as pessoas que estão, por diferentes razões, em posições onde influenciam a outros?


Parecem-me boas perguntas, mas a autocrítica a que me propus me inibe, ao menos por agora, de tentar respondê-las. Apenas peço-lhe socorro quanto à primeira pergunta desse artigo. Quem sabe você me ajuda a salvar minha reputação, se é que essa seja uma ação louvável depois do que conversamos por aqui. Até a próxima, a cavalo, camelo, burrinho, ou à pé mesmo.


1
“Exploring Protestant Traditions, an invitation to theological hospitality”, de W. David Buschart (IVP, 2006), p. 71.

Foto: © Ivon Ruiz